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Falsa Loura - Barreiras intransponíveis da luta de classes

Carlos Reichenbach vagueia sua protagonista em um mar cruel de esperanças inalcançáveis em uma existência tão dúbia quanto solitária.



É comum que o cinema de cada país reflita um pouco da percepção da classe artística de sua realidade. Acho que tal comentário se estende para todas as artes e, ainda que essa seja uma suposição muito objetiva, no processo de interpretação do autor reside toda a subjetividade necessária. Em Bom Dia (Yasujiro Ozu, 1959) o período pós-guerra no Japão é associado à um positivismo fabril de progresso cotidiano através do trabalho em que até o desemprego soa como oportunidade, já em Assunto de Família (Hirokazu Koreeda, 2018) o labor é visto quase que como um inimigo em uma terra do sol nascente mutilada por ele.


Com essa prerrogativa estabelecida, quero pontuar como Carlos Reichenbach firma em Falsa Loura (2007) sua representação singular do indivíduo brasileiro em eterno trânsito. Resgatando o mesmo ar vagante de dois de seus principais filmes, Filme Demência (1987) e Alma Corsária (1993), aqui o diretor expande a relação do ser com o ambiente, com a classe e até mesmo com a imagem em uma grande díade construída através de justaposições.


Se nos outros dois filmes os protagonistas são sujeitos rendidos às condições que lhes aparecem, que em uma análise mais fria podem até serem considerados passivos às vontades de seu subconsciente, com Silmara (Cristiane Mulholland) ele encontra uma relação muito mais interessante para dispor a hierarquia social no enredo. Como operária, sua beleza e presença destoantes a tornam uma líder, alguém a ser seguida, um exemplo para as demais que é, inclusive, incubida de moldar uma das “seguidoras” à sua imagem. Nessa posição, ainda que extremamente fragilizada pela pobreza, agravada por sustentar o pai, ela acha espaço para enervar seus sonhos e curtir a vida boêmia em total independência.



Por se destacar da massa, ela chama a atenção dos que orbitam outras esferas que não a sua. Silmara realiza o sonho de todas as suas companheiras de trabalho e não só conhece como também consuma uma relação com seus ídolos, cantores românticos, típicos galãs. Todavia, aqui ela não tem a mesma predominância, é segregada a um papel passivo e, dentre alguns outros usos cirúrgicos, Reichenbach explicita bem isso tirando dela a liberdade de ir e vir. Enquanto trabalhadora, toma o ônibus para casa, perambula pelo shopping com Briduxa e, desfrutando do misterioso dinheiro do pai, usufrui até mesmo de táxis. Já como amante, ela está relegada à disponibilidade do ônibus da banda de Bruno (Cauã Reymond) ou ao motorista contratado por Leonardo (Maurício Mattar).


Em adição a isso, dois outros fatores se chocam para criar o que, cinematograficamente, melhor desenvolve o subtexto no filme: a nudez e a sobreposição de imagens. Não à toa, sempre que tenta alçar outro status, seja na realidade ou na imaginação, Silmara é apresentada nua não só para expor sua fragilidade, mas também sua verdade. Por exemplo, quando sonha com Leonardo, descansa em sua cama e as imagens vagueiam pelo brega do karaokê onírico. Não há um corte, as transições são feitas sempre diluindo um plano no outro e o mar ressoa enquanto ela repousa desnuda. Também, ao acordar na casa de Bruno no litoral, depois de uma montagem que mais uma vez sobrepõe o sonho (dessa vez realizado) com o mar, ela se desespera ao voltar a realidade de que precisa trabalhar e, por isso, vagueia cobrindo-se com um lençol na tentativa de voltar para a fábrica. É como se só nesses momentos víssemos a real Silmara, não a que está presa ao trabalho ou tentando impressionar a figura que criou sobre aqueles que admira, mas sim a que retém o sonho e nega sua irrefugavel condição de proletária.


No final, por mais que passe toda essa jornada se ofendendo com as constantes insinuações que lhe fazem sobre prostituição, acaba sendo coagida a pratica-la de uma forma covarde. Aqui, enquanto se entrega verdadeiramente para Leonardo, sua nudez reside na crença de finalmente alcançar o posto que tanto almejava. Uma concretização tão real do sonho que não pode, simplesmente, ser mentira. Nessa crença, sucumbe ao pedido do pai que deseja iniciar o filho sexualmente e vai até o menino. Ela se deita com ambos e, para além do indivíduo, Reichenbach mostra a forma como o domínio é passado adiante pela classe dominante de uma forma não só simples como crua.



Por fim, a frase dita pelo garoto dinamita a ponte que Silmara passa a obra toda tentando construir, ela não pertence ao outro lado e não importa o quanto se disfarce. “Achei que você fosse loira de verdade” traz o escárnio e a ironia visceral daqueles que riem de cima. Inclusive, é essa existência transgressora da protagonista que corrobora para a perpetuação dos status. A ideia de poder transpor a barreira econômica que se forma entre as classes é o que mantém uma no controle e a outra controlada. Silmara exerceu esse papel, pseudo-transgressor na verdade, nesse jogo de poder. Ela serve como falso exemplo para perpetuar a esperança de ascender socialmente, transita entre os dois mundos, e, a partir do momento que vislumbra outro que não o seu, jamais volta a pertencer a qualquer um deles.


Aliás, conceitualmente é incrível como Carlos Reichenbach reafirma as mensagens de seu filme com letreiros e monólogos que a explicitam e reafirmam em tela. Ele vai desde a procura pelo prazer e o encontro com a dor, até a perpetuação de mitos e a relação de dominância na selvageria que reside no humano. Tudo em citações simples que, para um olhar desatento, podem parecer até mesmo dissonantes uma vez que constrói seu filme sem implorar para que o espectador “capte” a mensagem.


Embora eu seja fã de jornadas que olhem para como o interno se comporta em relação aos seus arredores, não tem como um filme tão potente quanto Falsa Loura, que correlaciona tão bem uma personagem à sua condição, não figurar entre meus favoritos e, nessa ocasião de revisitar alguns dos nossos prediletos, me instigar a escrever. Ele revira o estômago com articulações que exibem a pele como o órgão mais frágil de uma relação e constrói nele próprio os obstáculos intransponíveis de uma classe trabalhadora que tende a sonhar. Em minha breve experiência cinéfila, não me recordo de nenhum outro trabalho que atue tão bem em articular o indivíduo não só como produto de seus ambiente mas que também traça uma crítica tão acirrada a esse modelo de controle. São as farsas que o cinema escancara em suas mentiras.


Lista de favoritos do redator

1. Jovens, Loucos e Rebeldes | Richard Linklater, 1993

2. Frances Ha | Noah Baumbach, 2010

3. Corpo Fechado | M. Night Shyamalan, 2000

4. Bom Dia | Yasujiro Ozu, 1959

5. Faça a Coisa Certa | Spike Lee, 1989

6. Embarque | Guillaume Brac, 2020

7. Paris Is Burning | Jennie Livingston, 1990

8. Fogo Contra Fogo | Michael Mann, 1995

9. Licorice Pizza | Paul Thomas Anderson, 2022

10. Amantes | James Gray, 2008

11. Crepúsculo dos Deuses | Billy Wilder, 1950

12. Fonte da Vida | Daren Aronofsky, 2006

13. Sinais | M. Night Shyamalan, 2002

14. Mulheres a Beira de Um Ataque de Nervos | Pedro Almodóvar, 1988

15. Festim Diabólico | Alfred Hitchcock, 1948

16. Boogie Nights - Prazer Sem Limites | Paul Thomas Anderson, 1997

17. Falsa Loura | Carlos Reichenbach, 2007

18. Caramelo | Nadine Labaki, 2007

19. Blind | Eskil Vogt, 2014

20. Era Uma Vez Em... Hollywood | Quentin Tarantino, 2019


Esse texto pertence ao nosso especial Favoritos da Cine-Stylo: Uma lista com os filmes prediletos de nossos redatores e 11 textos para discorrer um pouco dessa paixão. Acesse!


 

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