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Zona de Interesse (2023) - Horror no extracampo

Extraindo forças daquilo que não é mostrado, Zona de Interesse é um soco no estômago que remete a Carl T. Dreyer e Alain Resnais.



No livro “A Linguagem Cinematográfica”, Marcel Martin define o plano como um recorte do universo fílmico. De forma resumida, a escolha de enquadramentos cria uma janela pela qual podemos vislumbrar o que se passa no filme. Essa janela, entretanto, não é o limite desse universo pré-estabelecido. Como consequência, tudo que está fora do quadro (também conhecido como extracampo) pode - e, muitas vezes, irá - afetar a obra que estamos desfrutando. É a partir dessa premissa básica que Jonathan Glazer constrói seu mais novo longa, Zona de Interesse. Nele, acompanhamos uma família alemã que, durante a segunda guerra mundial, vive ao lado de um campo de concentração. Protegidos pelas altas paredes, buscam ignorar o massacre que ocorre ao lado, mas aos poucos a maldade passa a contaminar o espaço familiar.


Glazer filma a banalidade do cotidiano de forma distanciada, como numa análise fria e rigorosa do dia-a-dia da família. Dessa forma, a câmera é predominantemente fixa e se nega a maiores aproximações. O que surge disso é que os personagens parecem fundidos ao ambiente claro, limpo e calculado, onde há pouco espaço para qualquer manifestação de emoções mais genuínas. Mesmo a interação entre os atores parece seguir esse rigor, onde manifestações mais potentes e espontâneas são guardadas apenas para momentos muito específicos. De resto, fica a ideia de um automatismo, uma verdadeira otimização dos espaços e das relações.


Essa paz, no entanto, é rompida quando surgem em cena pequenas pistas do genocídio que ocorre ali perto. Essas pistas, porém, não recebem mais ou menos atenção da direção; elas coexistem em meio ao banal, como uma pequena dor de cabeça que os personagens precisam lidar vez ou outra. Isso se manifesta, por exemplo, na forma que os criados da casa se vestem e se comportam. Com o vestuário pobre e as feições abatidas, eles não parecem se encaixar com o esplendor da casa na qual estão inseridos. Mesmo a opção por uma coloração mais lavada e dessaturada faz com que tais personagens se destaquem em tela, ainda que sejam, na maior parte do tempo, meros figurantes.


Nesse aspecto, o filme até me lembra do recentíssimo Folhas de Outono, cujos figurantes cristalizam o universo social proposto por Aki Kaurismäki. Aqui, entretanto, não há uma síntese entre tais figuras e os protagonistas, mas um completo contraste. Enquanto a família alemã se funde ao espaço (de certa forma, ela é o espaço), os poloneses e judeus são alienados por esse ambiente, esmagados por ele. Cria-se até uma relação da lógica capitalista de trabalho: os explorados sacrificam seus corpos para manter o templo limpo e arrumado para aqueles que os exploram.


Mais uma vez, Glazer opta por filmar essas relações da forma mais distante possível, revelando a percepção banal que os protagonistas têm quanto a tudo isso. Em certo sentido, a direção externaliza um viés psicológico dos personagens envolvidos: há uma busca incessante pelo não envolvimento nos eventos violentos, uma negação de sua explicitude, a crença em uma realidade justa, limpa e, mais uma vez, otimizada. Não é à toa que uma das cenas mais impactantes é a de membros do partido nazista conversando sobre o projeto de uma crematório em massa e sobre como ele contava com uma logística eficiente e econômica.


Porém, é em meio a toda a banalidade e apatia que o extracampo marca a sua presença, principalmente através do som. Ainda que seja possível evitar olhar para os campos de extermínio, é impossível não ouvir os gritos horrorizados, a cacofonia do maquinário, os sons de tiros, o ronco de motores quase alienígenas de tão estranhos. Mesmo os planos externos da casa não conseguem esconder totalmente fragmentos do inferno na terra. A fumaça que mancha o céu, o trem que leva as vítimas do genocídio, a eficiência da máquina e do progresso que maculam o próprio espaço natural, o verde e o azul sendo invadidos pelo concreto e o metal.


O drama doméstico, então, demonstra ter raízes bem profundas num terror atmosférico que me remeteu aos trabalhos de Carl T. Dreyer, diretor de O Vampiro (Alemanha, 1932). No caso, não acompanhamos as vítimas de um horror maior, mas os seus perpetradores ativos (como o caso do pai, que trabalha ativamente com os campos de concentração) e passivos (todos os outros que banalizam o que ocorre ao lado). O desconforto, no caso, está muito mais na incapacidade de mensurar a aceitação de tamanho mal, sua banalização e seu cálculo tão eficiente. Em mais um referencial, lembrei-me de Noite e Neblina (França, 1956) de Alain Resnais, documentário que questiona a própria capacidade humana de fazer o mal, não enquanto uma ação individual, mas uma construção sistêmica que é tolerada de forma injustificável e incompreensível.


Quando o filme chega ao fim, a sensação é de exaustão. Esse cansaço, entretanto, não se dá pela monotonia do banal, mas pela banalidade do mal. Mesmo quando Glazer opta - raramente - por momentos mais frontais de terror (a câmera noturna que enxerga a personagem em cores negativas é um bom exemplo), a sensação de desgaste psíquico não é tão potente quanto a mera normalidade daquelas vidas que não pareciam enxergar o sofrimento logo ao lado. O cotidiano se torna mais terrível que qualquer imagem supostamente mais “assustadora”. O mal não está no extracampo (embora seus frutos terríveis estejam lá). O mal está exatamente na frente da câmera.



 

Nota do crítico:


 

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