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Folhas de Outono (2023) e o Amor no Capitalismo Tardio

Bebendo de fontes como Bresson e Fassbinder, Folhas de Outono é uma mistura estranha de cor e apatia que consegue aquecer o coração e encantar os olhos.



Homem conhece mulher. Apaixonados, tentam se aproximar, mas a vida traz dificuldades e eles precisam se esforçar para fazer a união dar certo. A mesma história de amor já foi contada um milhão de vezes ao longo da história humana e em todas as mídias possíveis. Ainda assim, voltamos os olhos para os mesmos romances e, de alguma forma, encontramos algo novo ou que, em certo sentido, tem a capacidade de revelar o invisível a partir dos seus elementos visíveis. Dessa forma, entendemos que não se trata do que é dito ou mostrado, mas do como. Por esse motivo - e por tantos outros -, considero Folhas de Outono uma obra-prima contemporânea.


Passando-se nos tempos atuais, o filme retrata um país pobre, de trabalho precarizado e pessoas desinteressadas na própria vida. Essa caracterização do capitalismo tardio surge desde na escolha dos planos - não temos a exaltação de prédios ou obras arquitetônicas impressionantes, todos os edifícios são mostrados mais como espaços de aprisionamento do que de realização de sonhos -, até no trabalho dos figurantes, que apresentam um tom emocional síncrono, trazendo um cansaço perene da sociedade que precisa do trabalho para ter conforto, mas se cansa de trabalhar. Inseridos nessa lógica, os protagonistas vivem suas vidas de forma repetitiva, seguindo o fluxo de casa, trabalho, bar, casa. Os planos se repetem, as feições não mudam e o desinteresse pelo próprio espaço da cidade parece se tornar ainda maior.


Interessante perceber que, em meio a toda essa monotonia, existe a presença de muitas cores por todo lugar, indo desde os armários de um mercado, até as paredes da casa da protagonista. Em meio a miséria e a tragédia (o rádio sempre nos lembra que está acontecendo uma guerra entre dois países vizinhos), parece haver um resquício de humanidade que se manifesta no espaço, um resquício de cor e atitude que falta às próprias pessoas, que seguem suas vidas no modo automático em um sistema que as oprime e não lhes dá opções. Ou, de forma mais clara: a presença de uma energia reprimida que se esconde diante de todos.


Essa relação entre energia e repressão também se manifesta no tempo de duas formas. Primeiro, temos o retorno à lógica do trabalho como um ponto que nos dá a verdadeira noção de tempo, sendo o parâmetro para a passagem de dias e semanas. Ao mesmo tempo, a representação dessa energia da cidade transmite uma impressão anacrônica, como se estivéssemos testemunhando um romance de épocas passadas, em uma história que poderia muito bem se situar no início da Revolução Industrial, por exemplo. Isso, de certa forma, revela uma faceta universal de Folhas de Outono: ainda que trate da história específica de seus dois protagonistas, a história apresenta um olhar geral sobre as relações de trabalho e sobre como o espaço pode, contraditoriamente, ser opressivo e libertador, tendo potencial para ambos. É uma história de hoje, ontem e dez mil anos antes de Cristo.


Essa universalidade também se manifesta na apresentação quase arquetípica de seus protagonistas. De um lado, a personagem interpretada por Alma Pöysti é serena e inteligente, mas não deixa de se impor quando necessário. Do outro lado, o personagem de Jussi Vatanen é escravo do vício, mas tem um bom coração e busca mudança. É brilhante a forma como ambos se conectam um ao outro e também ao próprio universo em que estão inseridos. Assim como os figurantes, eles também apresentam um certo desinteresse, uma mecanicidade e um estranhamento que remete diretamente ao método de Robert Bresson, que fazia seus atores - que ele chamava de modelos - internalizarem ao máximo as emoções ao invés de externalizá-las.


Com isso, as interpretações dos protagonistas soam “frias” e “robóticas”. Isso, porém, não é demérito, mas mais um componente de construção desse mundo dominado pelo trabalho precarizado, que precariza também as próprias relações. Desse suposto distanciamento das relações, é perceptível como as pequenas ações acabam ganhando grande impacto. Trocas de olhares são poderosas, a compra de um presente simples ganha peso e a tentativa de largar um vício adquire contornos ainda mais dramáticos, ainda que Aki Kaurismäki nunca apele para planos mais representativos e estilizados. Mesmo nos momentos mais importantes da trama, o peso é entregue de forma discreta - um pequeno movimento inclinando a câmera para baixo, por exemplo -, ao invés de recorrer a grandes estímulos.


Em uma democracia de planos, Kaurismäki enxerga a vida de seus personagens a partir de uma perspectiva integral: o trabalho miserável existe e, junto dele, todas as dores. Mas também há beleza, cor e amor. Nessa dança entre a apatia e a intensidade, Folhas de Outono encontra um senso humor muito específico, que consegue se inserir em um cenário depressivo, mas que também abre espaço para a felicidade genuína. Quando o filme se encerra, fica a sensação de se ter vivido uma vida inteira a partir de um recorte.


Folhas de Outono guarda um universo dentro de si. Através de um aparente distanciamento, o filme consegue revelar o invisível presente na realidade material, não escondendo suas mazelas, mas também sem deixar de mostrar que existe beleza, alegria e amor. Um filme que aquece o coração sem cinismo, mas que não nega a realidade precária na qual estamos inseridos, trazendo tudo isso à tona através de escolhas econômicas e inteligentes da linguagem cinematográfica. Como falei no início do texto: uma obra-prima contemporânea.


 

Nota da crítica:


 

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