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Especial PTA | Sangue Negro (2007)

As facetas obscuras – e o legado sangrento – do self-mademan americano



Quando se fala em “cinema americano”, dois tipos de filme, à grosso modo, tendem a vir à tona. O primeiro tipo são os enlatados hollywoodianos, confeccionados numa esteira de produção em plena eficiência e que mais segue os ditames do mercado cinematográfico do que, propriamente, as intenções artísticas específicas dos realizadores em questão. O segundo tipo, por outro lado, são filmes que contextualizam as suas elaborações estéticas em cenários caracteristicamente estadunidenses para tratarem de temáticas que, de uma forma ou de outra, são caras à cultura dos EUA. Em suma, são filmes que pertencem aos EUA, num sentido essencial.


Sangue negro pertence à segunda categoria. Isto é, o filme de Paul Thomas Anderson, que contempla o mito americano do self-made man a partir da narrativa de um petroleiro aos moldes de John e William Rockfeller no início do séc. XX, momento histórico chave para o firmamento do capitalismo industrial em solo estadunidense, possui uma bagagem de referências estéticas que remetem a um cinema americano por excelência, nesse sentido francamente essencial: nas imagens que constituem a mise-en-scène do filme, vê-se ecos de cineastas como John Ford, Howard Hawks e John Huston.


No entanto, onde os diretores americanos supracitados se valeriam dessa estética para, de maneira geral, enaltecerem certos valores da cultura estadunidense, Sangue negro vai na contramão e cria uma atmosfera inquietante, quase até alarmista. As composições de Robert Elswit, embora não deixem de realçar a opulência sublime do cenário americano, são marcadas por certas imperfeições técnicas: uma trepidação da câmera aqui, uma mancha de luz causada pelo seu reflexo na lente ali, uma deformação na temperatura das cores de um plano acolá. Na trilha sonora, onde em outros filmes americanos ela seria composta por canções glorificantes de ares épicos, as peças de Jonny Greenwood, por outro lado, são cacofônicas e sombrias, tão ásperas e acidentadas quanto o terreno que serve de palco para a narrativa do filme, o que cria um clima carregado e aflitivo, ao invés de exultante.


E é por meio desta mise-en-scène – uma bagagem de referências estéticas de um cinema americano por excelência tecnicamente imperfeitas, em última análise – que Sangue Negro nos chama a atenção para a imperfectibilidade do mito do self-made man. O arco dramático do protagonista Daniel Plainview, dessa maneira, é dicotômico: de um lado, ele consegue acumular a fortuna material a partir do seu trabalho, do seu suor; nesse sentido, ele obtém sucesso. Por outro lado, no entanto, Plainview se degenera moralmente, destrói a sua humanidade interior e, com efeito, devasta tanto a ternura dos seus relacionamentos mais íntimos, quanto aquilo que ele percebe como obstáculos que se apresentaram à sua frente ao longo de sua busca cada vez mais implacável e violenta pela riqueza. Logo, por esse ângulo, a jornada narrativa do protagonista é profundamente trágica.


Isso porque Plainview, ao longo do filme, é consumido pela ganância de modo gradativo e constante, tornando-se, por consequência, um indivíduo progressivamente mais cheio de ódio e desprezo. Em outras palavras, quaisquer que tenham sido as suas razões originais para buscar empreender no então crescente ramo da extração de petróleo, eventualmente nos é revelado que a sua ganância, a força motriz que estimula o seu trabalho, em certo momento passou a ser alimentada pelo rancor que ele começa a nutrir, ao que parece, por todos ao seu redor: “Eu vejo o pior nas pessoas”, diz ele para Henry, quem ele pensa ser o seu meio-irmão neste momento do enredo; “e não quero que ninguém mais tenha sucesso.”

O que, mesmo em face da constante tensão que paira sobre todo o filme, como uma assombração invisível que contamina a imagem, ainda assim soa como uma surpresa, porque, até este momento, ainda havia alguma simpatia a ser concedida ao protagonista. Houve algumas falcatruas aqui e ali, sim, e, nesse ponto, ele já havia abandonado o próprio filho em nome dos negócios, mas, mesmo assim, tudo isso poderia se passar como nada mais do que infortúnios do ofício, já que Plainview, até antes de revelar que o que alimenta a sua força de trabalho de fato é o seu ódio, parecia sinceramente preocupado com a fruição econômica de Little Boston, local em que ele explora petróleo no filme.


No entanto, a bem da verdade, nunca efetivamente conhecemos quais são essas intenções originais: desde o primeiríssimo momento em que encontramos Plainview, vemo-lo como um homem do trabalho. Na cena em que é introduzido ao enredo, ele está em uma caverna pedregosa, sozinho, engolfado nas sombras, atingindo as paredes de pedra da caverna com uma picareta, em busca de minérios de prata. Como que desde a sua gênese, um homem que nasceu no trabalho, que penetrou o universo por meio da sua força braçal. E é desde essa primeira cena, aliás, que a decupagem econômica de Anderson e Elswit efetua um dos movimentos de câmera mais recorrentes em todo o filme: ela conecta, em pequenos planos-sequências, enquadramentos do homem com o seu instrumento de trabalho, seja a picareta, um martelo ou a própria torre de extração de petróleo.



Uma conexão íntima, quase erótica, que une homem e instrumento numa coisa só: o próprio trabalhador, incorporado na figura de Daniel Plainview, torna-se o instrumento de trabalho, a despeito da sua humanidade interior. Drena-se o petróleo, o espesso sangue negro da terra, em busca da riqueza que ele gera, e drena-se também, com efeito, a humanidade interior do indivíduo nessa busca, com o mesmo intuito de geração – e acumulação – de riqueza. Ao final do filme, Plainview concretiza o objetivo que havia expressado para Henry, na mesma cena em que revela as suas verdadeiras motivações, que é a de ir morar numa mansão gigantesca e isolada de tudo e todos. Mas se, ao chegar até lá, não resta nada do protagonista se não um vislumbre do homem que ele já foi, se é que um dia ele o foi, então, de que vale, de fato, toda essa riqueza? Qual o seu sentido?


Por essa ótica, aliás, é interessante de se notar que o enredo de Sangue negro de fato não parece ter nenhum sentido em particular, que não seja a simples expansão dos negócios de Plainview. Por conseguinte, a impressão é de que a progressão da narrativa não passa de um constante e cada vez mais violento enfrentamento dos obstáculos que se interpõem entre o protagonista e a riqueza (o que, com efeito, acumula o seu ódio), mas sem nenhuma direção em específico que não seja o afogamento de Plainview em sua própria cólera. E é este o caminho que o seu arco dramático acaba tomando, especialmente após a revelação do ódio que ele nutre por todos que o circundam: Plainview vai se tornando cada vez mais amargo, mais rude e insensível, e, ademais, cada vez mais faz o que for necessário para acumular ainda mais riqueza, destruindo com implacável, furiosa e crescente violência tudo aquilo que se põe no seu caminho.


Essa mudança gradual e destrutiva do protagonista se vê na performance de Daniel Day-Lewis: conforme desenrola-se o filme, cada vez mais o ator vai retesando os seus músculos, enrijecendo-se pelo rancor pelo qual o seu personagem vai sendo consumido. Em diversos momentos, a câmera de Paul Thomas Anderson fecha-se no rosto de Day-Lewis, e o ódio que toma conta de Plainview fica ainda mais evidente: mais e mais, a face do personagem vai se contorcendo, até tornar-se uma carranca disforme cheia de ódio, que cada vez menos se esforça para esconder o desprezo que sente por todos ao seu redor – ou melhor dizendo, cada vez menos consegue fazê-lo. Ao final do filme, Plainview nem parece mais um ser humano, e sim uma criatura humanoide disforme que se arrasta pela sua mansão, parecido com Saturno, do macabro quadro de Francisco Goya, amorfo pelo ódio que o consome e que por ele é ruminado.


Plainview, ao final da vida, nada mais tem a semear pelo mundo que não o seu ódio. Consequentemente, é este mesmo ódio que está na conclusão de todas as suas relações: afinal, para Plainview, a partir de certo ponto da sua vida, todos são ou aliados, engajados com ele numa aliança pragmática que o auxilia na sua contínua geração de riqueza, ou são obstáculos, que impedem a sua acumulação. No primeiro caso, são mantidos por perto, acolhidos pela tutela protetora de Plainview, ainda que seja esta uma proteção sem afetos, meramente contratual. No segundo caso, em contraste, são repelidos, se não destruídos, com a veemência equivalente ao tamanho da obstrução, e sem remorsos.


É isso o que vemos acontecer na trágica relação entre Plainview e o seu filho, H.W. Na última cena dos dois juntos, Plainview não possui nada que não seja desprezo ao rapaz: a torrente de insultos e desmoralizações que termina com H.W. sendo deserdado pelo próprio pai enfim concretiza a completa desumanização do protagonista. “Você não foi nada para mim além de um rostinho bonito que eu precisava para facilitar as minhas negociações”, diz Plainview para o filho; “um bastardo, achado num cesto”. E o motivo da humilhação? Bem, H.W. havia ido notificar o pai que se afastaria da sociedade com ele para fundar a própria empresa de exploração de petróleo, no México. Isso significa, aos olhos de Plainview, que o filho se tornou um competidor, um opositor; logo, um obstáculo ao seu enriquecimento. Por isso, deve ser reprimido.


Tal conclusão trágica, no entanto, levanta a questão: será mesmo verdade que H.W., para Plainview, nada mais era do que um “rostinho bonito” para “facilitar as negociações”? Bem, é vero que Plainview mentiu sobre a relação que tem com H.W. em um certo momento, ao dizer que a mãe do rapaz morreu no parto, quando, na verdade, H.W. de fato foi acolhido por Plainview após a morte chocante e acidental do seu pai biológico (é neste momento, inclusive, que a morte cruel se torna uma certeza para Plainview no seu decurso como um self-made man: o close no seu rosto carrancudo, machado de petróleo e sangue, transmite a internalização deste reconhecimento, e é um passo a mais na destruição da humanidade interior do personagem). Evidentemente, uma forma cínica de se buscar uma conexão empática com um cliente em potencial.



É verdade, também, que Plainview abandonou o próprio filho, quando este começou a lhe gerar prejuízos. O amor de pai, ao que parece, não foi páreo para possíveis comprometimentos do seu negócio, e era um ou outro. E Plainview fez a sua escolha. A imagem dele se afastando do trem que leva H.W. para longe, resoluto na sua decisão e sem nem olhar para trás, engolindo o seu arrependimento literalmente na força do ódio, enquanto o filho esbraveja gritos de confusão e desespero, é uma das mais fortes de todo o filme – talvez até de toda a carreira de Paul Thomas Anderson.


Mas, se realmente não tivesse amor pelo filho, então, o que explicaria o seu genuíno arrependimento de tê-lo abandonado, mesmo que, em relação ao seu empreendimento, era a opção mais lucrativa a se fazer, com ou sem zelo pela moralidade? Na cena do batismo, é precisamente esta a ferida em que toca Eli Sunday, o pastor de Little Boston, para humilhar Plainview, este que, por causa disso, passa a nutrir um ódio ainda mais mordaz pelo pastor. Além disso, nas cenas do início do filme, em que Plainview e H.W. vasculham o território da propriedade dos Sunday em busca de vestígios de petróleo, a conexão de pai e filho entre os dois parece ser genuinamente verdadeira. E, mesmo na cena final, em que H.W. é deserdado por pelo pai e o laço emocional entre os dois é desmanchado de uma vez por todas, o excerto onírico que conclui a cena nos lembra de que, em algum dia, num passado nem tão remoto assim, houve ali um genuíno amor paterno.


O que aconteceu, então? Bem, observemos o que acontece com H.W., que o faz ser abandonado pelo pai em primeiro lugar: ele fica surdo. Incapaz de ouvir a voz do pai, incapaz de se comunicar com ele. Isto, por si só, já é um símbolo bastante significativo: é a expressão metafórica da incomunicabilidade; por conseguinte, da falta de conexão, da perda do elo emocional entre pai e filho, e, não por acidente, é justamente a partir da surdez do rapaz que o afeto entre os dois começa a se desmoronar.


Mas, mais importante do que isso, é o momento específico em que H.W. fica surdo: precisamente na cena em que se descobre que há, nas palavras de Plainview, um “oceano de petróleo” no solo de Little Boston. O que causa o acidente é a força do jato de petróleo, que empurra H.W. do telhado e o faz bater a cabeça numa viga de madeira. Ou seja: quando o negócio de Plainview fruiu o seu maior lucro, quando provou-se ser de fato um empreendimento rendável, foi aí que ele perdeu o contato com o seu filho. Uma vez tomado pela certeza do seu empreendimento, Plainview encaminhou-se por completo em direção à amargura e da raiva que alimentam a sua ganância. A partir daí, era só questão de tempo para que ele abandonasse H.W., seu próprio filho: no final dessa cena, o sorriso retorcido de Plainview, todo encoberto por petróleo e engolfado pelas sombras da noite é a imagem de uma criatura que deixa a escuridão ocupar a sua alma.


Aliás, há um breve momento, no início do filme, que contém a chave para que compreendamos não só o que fez a relação entre Plainview e H.W. se deteriorar, como para o que efetivamente transformou Plainview de um trabalhador esforçado para um monstro ganancioso e rancoroso: quando ele e H.W., ainda bebê, estão no trem. Conforme a imagem nos apresenta um filho que, por meio de gestos indicativos, reconhece o pai e, consequentemente, um pai que aceita tal reconhecimento (evidenciando, portanto, que Plainview de fato já se afeiçoara por H.W.), a edição de Dylan Tichenor sobrepõe o som de um monólogo de Plainview, que, conforme entendemos no corte seguinte, pertence ao futuro e é direcionado a uma comunidade potencialmente interessada nos seus serviços de petroleiro.


Ou seja: a humanidade de Plainview, esta mesma que poderia ter lhe dado válidos motivos para trabalhar de maneira esforçada, aos moldes da melhor imagem do self-made man americano, e que o levou a responder ao inesperado chamado da paternidade, um dia existiu. Porém, sempre presente também esteve o espectro da ganância, que busca acumular tudo para si e destrói todos os obstáculos ao seu redor. E foi esta que, ao longo do tempo, consumiu Plainview, consequentemente destruindo a sua humanidade interior com a mesma força devastadora que os seus empreendimentos industriais avançaram implacavelmente, também acumulando tudo para si e destruindo todo e qualquer obstáculo no seu caminho.



Força devastadora esta, por sinal, que encontra o seu maior impedimento nos entraves feitos por aquele que, provavelmente, é o maior inimigo de Plainview e dos avanços do seu empreendimento em todo o filme: Eli Sunday. Aqui, o que a relação entre os dois personagens expressa é a maneira como a ganância de Plainview conclama para si, para além das riquezas da terra de Little Boston, também a influência política sobre esta. A escolha de Paul Thomas Anderson de enfocar os avanços do capitalismo industrial nos EUA em conflito, especificamente, com a religião, em Sangue negro, provavelmente diz respeito a uma realidade histórica específica dos EUA (de maneira similar a como, para efeitos de comparação, o protagonista Paulo Honório, do romance brasileiro São Bernardo, de Graciliano Ramos, eventualmente adquire influência política por meio do crescimento da sua fazenda agropecuária, o que retrata a realidade histórica do coronelismo no Nordeste do Brasil), mas, de qualquer forma, o que está em jogo entre os dois personagens é esse embate pela influência política – isto é, o controle do poder – sobre Little Boston e os seus habitantes.


De um lado, Eli Sunday: a performance teatral, por vezes excêntrica, de Paul Dano, além de estar alinhada com a forma de pregação dos pastores dessa época, incorpora a influência política da religião, isto é, a maneira como o pastor detém o poder sobre os habitantes de Little Boston sob os dogmas cristãos. Do outro, Daniel Plainview: a ascensão impetuosa e torpe do capitalismo industrial, que ameaça abalar a ordem já evidentemente imposta há muito tempo. O conflito entre os dois, portanto, é um de interesses. Plainview, em seu avanço inevitável e inclemente, pretende arrebatar Eli de seus poderes, ao passo que Eli, da sua parte, não cederá tão facilmente. A promessa de violência entre os dois se instaura desde o primeiro encontro.


A forma como Plainview e Eli, nesse sentido de uma influência política impositiva sobre Little Boston, são dois lados da mesma moeda é expressa de diferentes maneiras: por exemplo, enquanto o empreendimento de Plainview é realizado a todo vapor, Eli reconstrói e expande a sua Igreja da Terceira Revelação, não por acidente estando ela posicionada diretamente a frente da torre de extração de petróleo de Plainview. Eli, também, vai buscando agregar cada vez mais fiéis, que são precisamente os trabalhadores de Plainview, e isso gera complicações.


Inclusive, há um momento marcante, quando tanto a torre de extração quanto a Igreja da Terceira Revelação estão sendo construídas, que a montagem associa dois planos muito expressivos nesse sentido: primeiro, Plainview, perdido nas próprias ideias, sentado no seu escritório e com os olhos na torre de extração, num plano iluminado que avança lentamente em direção ao personagem, num travelling para frente. E então, logo no corte seguinte, Sunday, perdido nas próprias ideias, em pé enquanto trabalhadores ao seu redor transportam vigas e constroem a estrutura da Igreja, num plano sombreado e que se afasta lentamente do personagem, num travelling para trás. Em síntese, dois personagens que, por motivos opostos, ambicionam o mesmo objetivo: o controle do poder de Little Boston.


Ademais, não há uma cena de diálogo entre os dois que não seja conflituosa, isto é, que não remeta diretamente ao embate pela influência política que há entre os dois. Por vezes, as falas de cada personagem (redigidas pelo próprio Paul Thomas Anderson, que também é o autor do roteiro de Sangue negro) são sobrepostas: eles falam um em cima do outro, sem permitir que um complete a ideia antes que o outro possa falar, sempre num esforço para fazerem com que os seus respectivos interesses cresçam e se sobreponham ao outro, de uma forma ou de outra.



E é claro que Little Boston, em toda a vastidão de sua paisagem, nada mais é do que um palco metafórico para o embate dessas duas forças de influência: a religião, especialmente os dogmas cristãos, no caso do contexto do filme, e a ordem industrial capitalista; uma luta de intensidades crescentes que, simplesmente, não poderia ficar muito tempo alheia à violência. E Eli é tão sedento por poder quanto Plainview; em grande parte por causa disso, não cede tão facilmente aos avanços progressivamente mais intempestivos do protagonista, o que, consequentemente, faz com que seja ele o maior inimigo do petroleiro, por quem ele cultiva o maior ódio e, por fim, resulta na sua sanha assassina violenta e cruel.

Por isso mesmo que é o assassinato de Eli o que conclui Sangue negro. Porque simboliza a força implacável do capitalismo industrial, que pelo solo estadunidense avançou de modo agressivo e intermitente, sem medir esforços para a crueldade contra as suas resistências, de qualquer tipo que tenham sido, e, para além disso, coroa o triunfo do seu legado sangrento. Conclusão esta que, afinal, era inevitável desde o início: no plano de abertura do filme, acompanhando o enquadramento aberto das montanhas, os metais da orquestra de Jonny Greenwood, crescendo como o som de uma sirene, não apenas geram alarmismo, mas efetivamente profetizam: no decurso dessa empreitada, haverá sangue. E houve.


E de onde se despede Daniel Plainview, depois de sua jornada? Bem, no mesmo lugar em que começou o filme: numa caverna embaixo da terra, isolado do mundo, compenetrado no seu trabalho, alimentado pela ganância. Sim, é uma caverna mais ampla, mais luxuosa e mais bem iluminada, mas, mesmo assim, não deixa de ser exatamente o que é: uma caverna embaixo da terra. E o que seria a forma brutal com que Plainview esmaga o crânio de Eli se não uma demonstração cabal daquilo que é o seu trabalho? Pois, precisamente a conclamação e a acumulação de tudo para si, reservando para os seus obstáculos nada mais do que a devastação – se preciso, a violenta destruição. Uma vez enveredado neste caminho, é esta a que sempre foi a função de Plainview. Sempre foi esta, melhor dizendo, a maior probabilidade do caminho que ele iria seguir.


Sangue negro, portanto, possui uma estrutura narrativa cíclica – o que, com efeito, reflete a natureza cíclica sobre a forma como o mito do self-made man se reproduz na sociedade americana, até os dias de hoje. É este, afinal, um dos pilares que levou os EUA a se tornar uma grande potência econômica. Como, no entanto, lidar com a ganância, que mais frequentemente do que não decorre dessa mentalidade? O que isso significa, também, para a própria estrutura econômica dos EUA? E a destruição da humanidade alheia, e o legado de sangue que está por trás de boa parte dessa riqueza? Sob quais bases morais estão as heranças obscuras do capitalismo industrial americano, que em muito contribui para transformar os EUA em uma das maiores potências econômicas mundiais dos dias atuais?

No final do filme, quando o mordomo de Plainview chama-o pelo nome, o petroleiro, ofegante, responde: “acabei por aqui.” Então, de maneira súbita e um tanto desajeitada, os violinos da trilha sonora de Jonny Greenwood começam a tocar, numa harmonia animada que, em tese, comunica uma espécie de final positivo. Como disse anteriormente neste texto, é positivo se considerarmos, unicamente, o desejo de acumulação material de Plainview, que foi concretizado. Mas e o resto? E o próprio Plainview, que não é mais do que uma massa humana rancorosa? E os seus relacionamentos íntimos, que se deterioraram por completo em nome dos negócios? E a trilha de sangue e devastação que os seus empreendimentos, efetivados pela sua ganância cheia de ódio, produziram? Enfim, a pergunta derradeira que Sangue negro parece deixar em sua conclusão – e é com ela que eu encerrarei este texto – é a seguinte: A riqueza foi produzida, sim, mas será que se equipara com todas essas perdas?


Sangue negro, enfim, é um grande filme não apenas por conter um intricado estudo de personagem, mas por contemplar uma das figuras mais emblemáticas da cultura americana, de modo a desvelá-la e revelar as suas facetas obscuras. O self made man, afinal, não é apenas um trabalhador compenetrado e esforçado que busca a fruição econômica: ele pode ser, também, um ganancioso, completamente cegado pela sua ambição violenta por acumulação de riqueza e, com isso, pode acabar sendo consumido pelo rancor; aliás, este pode vir a ser o combustível para a continuidade de seu trabalho. E, uma vez que intui essas ideias por meio de sua mise-en-scène caracteristicamente americana, mas para efeitos bastante distintos e originais, o filme de Paul Thomas Anderson é não um pastiche das obras de seu país de origem, e sim uma continuação para as suas possibilidades estilísticas.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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