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Whiplash (2014)

Sensualização de e conivência com uma história de abuso



Whiplash é o tipo de filme que todo cinéfilo de primeira viagem põe no rol de filmes favoritos. Comigo, não foi diferente, e acredito que o motivo, pelo menos em parte, foi porque de fato se trata de um filme muito estiloso e cativante. Certamente é o tipo de filme que te envolve e que te dá uma experiência narrativa memoravelmente gratificante. Contudo, qualidades isoladas como “estiloso” e “cativante” não necessariamente implicam num todo efetivo em seu projeto. Isso é o que proponho aqui: apesar de alguns pontos altos, Whiplash, no fim das contas, encontra dificuldades em sensibilizar-se com o tema do abuso que põe em voga.

Me parece claro que o longa de estréia de Damien Chazelle tem a intenção de criticar a postura abusiva na busca pela excelência, incorporada na relação destrutiva do baterista mirim Andrew com o seu mentor problemático, Fletcher. Evidência disso é que o filme se conscientiza dos abusos deste: na cena em que Andrew e seu pai conversam com uma advogada, no final do segundo ato, por exemplo, os traços psicóticos do instrutor em sua busca obsessiva pelo próximo “grande músico” são explicitados.



Mas um olhar mais minucioso revela que Andrew não atingiu o sucesso porque superou o abuso, e sim porque assimilou-o. Em outras palavras, o protagonista se torna um exímio baterista não porque rejeita os métodos de Fletcher, mas sim por causa deles. Por esse ângulo, os elementos que simbolizam os parâmetros que “justificam” o abuso são ratificados pela narrativa: o pai de Andrew nunca deixa de simbolizar o fracasso, o esforço inexorável e autodestrutivo do personagem principal (incorporação do abuso) é o que o conduz ao sucesso e os meios de Fletcher, ainda que não deixem de ser apontados como “extremos”, nunca são de fato questionados, mas sim apresentados como a única via possível para a glória.

O que, por si só, não é um grande problema – não fosse a tentação de compor um entorno musical que acabe vibrando com essa narrativa. Nesse sentido, a mise en scène de Whiplash é deliciosamente rítmica, entrega-se ao embalo do jazz e deslumbra-se com todo o cenário musical. Quando em movimento, a câmera é dançante, com muitos travelings sensuais que se movem ao som dos instrumentos; quando estática, ela efetua muitos planos detalhes que engendram uma montagem ágil, rítmica, visualmente envolvente. Entretanto, toda essa estilização musical, por mais fascinante que seja, age contra os propósitos da obra e culmina na sensualização da trama de abuso.

Além disso, vale comentar a maneira como Whiplash retrata o seu principal antagonista, Fletcher. O longa tem consciência de que ele é um abusador, mas acaba tomando-o como, na verdade, uma pessoa de personalidade complexa. Ele é maquiavélico, porém comprometido com o seu propósito; exigente, porém apreciador do “talento genuíno”. Ademais, a performance de J. K. Simmons corrobora com esse retrato. Em cena, o ator exala imponência. Nos momentos decisivos, suas entregas são precisas, afiadas e confiantes, e, nos de maior emotividade, cativantes. Em suma, mesmo que seja um personagem moralmente desprezível, o filme, efetivamente, nos desperta um certo fascínio por ele. Aliás, Simmons recebeu tanta aclamação que acabou vencendo o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo seu trabalho.



A cena no bar de jazz, durante o interlúdio entre o segundo e o terceiro atos em que Andrew decide desistir de tocar bateria, sintetiza muito da maneira problemática como Whiplash lida com esse personagem. Ele, que literalmente levou um de seus ex-alunos ao suicídio, neste momento, coloca-se como um mentor genial mal compreendido. E o filme concorda com isso: “Há algum limite?”; “Não, porque o próximo Charlie Parker não seria limitado por nada.” Da condução do diálogo à entrega das falas, não há na cena nenhum tipo de ambiguidade. Aqui, a tese de que o abuso é necessário para o sucesso é confirmada e, assim, o filme nos leva ao clímax.


No fim das contas, Whiplash é uma história triste – a de um rapaz talentoso vilipendiado por um mentor abusivo em busca de um ideal de perfeição relativamente abstrato e nunca questionado –, mas é encarada, não ironicamente, como narrativa de sucesso. Assim, quando Andrew dá o seu show após rejeitar o abraço do pai e retornar ao palco, tanto o seu mentor problemático quanto a encenação lhe concedem admiração. E é justamente essa falta de ambiguidade a principal falha do longa de Damien Chazelle: ao se preocupar demais em compor um enredo dramático competente e um entorno musical estimulante, no final, o filme acaba sensualizando e sendo conivente com a própria trama de abuso que tenta criticar.


Nota do crítico:


Esse o segundo de um especial de quatro textos sobre os trabalhos de Damien Chazelle, quando disponíveis, você pode acessar os demais textos aqui:



 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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