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Cidadão Kane – A sensibilidade moderna na experiência do cinema

Para trabalhar um estudo de personagem sobre um dos mais emblemáticos personagens da cultura norte-americana, o magnata do mundo corporativo, Orson Welles se apropria de avanços técnicos para efetuar uma abordagem cinematográfica inovadora.



O primeiro aspecto marcante de Cidadão Kane é a peculiaridade de sua estrutura narrativa. Para efetuar um estudo de personagem sobre uma figura especialmente mítica da cultura norte-americana, o magnata do mundo corporativo, o roteiro de Herman J. Mankiewicz opta por uma abordagem notavelmente investigativa: Charles Foster Kane, o nosso enigmático protagonista, não é aquele com quem construímos um laço empático ao longo de uma narrativa cujos acontecimentos, conectados numa lógica de causa e efeito, culminam num clímax significativo e emocionalmente gratificante, e sim, por outro lado, um objeto de estudo.


No início do filme, uma cena filmada em planos-detalhe que fragmentam a figura de Kane nos introduz, de modo dramático e intimidante, ao mistério de Rosebud, que guia toda a exploração antropológica que se subsegue no longa. Então, ao sermos conduzidos a uma reportagem televisiva que narra, num resumo jornalístico, toda a vida de Charles Kane após a sua morte, somos levados ao conhecimento de que, na verdade, não só a narrativa do filme não será linear, já que o protagonista morre, literalmente, na primeira cena, como já sabemos essencialmente de tudo o que está prestes a acontecer na sequência.



A partir disso, o filme é uma grande costura de diferentes relatos, em que a cada outra vez que nos reencontramos com Kane, embora a narrativa siga alguma linearidade com a sua história de vida, a interpretação parece contradizer aquilo que imediatamente acabamos de presenciar: se, num primeiro momento, Kane é tido como um empreendedor talentoso e destemido, certamente um alguém a se admirar, logo no momento seguinte ele é um parceiro de negócios arrogante e dissimulado; se, de um lado, ele é um doce amante, por outro, também é um namorado controlador.


Isso porque tais cenas não se baseiam na realidade dos fatos, mas sim na perspectiva de cada personagem coadjuvante que constrói o seu relato particular, e que conhece o nosso protagonista por um ângulo ou por outro. Qual deles é o mais correto, qual deles se aproxima mais da verdade? Há alguma validade nas falas de todos os entrevistados, ou tudo não passam de projeções subjetivas sobre a figura de Kane? Bem, é difícil dizer com certeza – esse é o grande ponto de Cidadão Kane.


A postura que tomamos no filme, portanto, é outra: ao longo da experiência, o espectador assume o papel do jornalista, e é sob esta perspectiva, a do indivíduo que investiga, que disseca e que busca exumar alguma conclusão mais cristalina sobre (sem a intenção de fazer trocadilho com a sonoridade semântica da seguinte frase) quem é Kane, a partir da incógnita de Rosebud, que experimentamos o desenrolar de Cidadão Kane. Isto é especialmente notável: ao estimular no seu espectador esse distanciamento analítico em relação ao seu protagonista, na medida em que não nos identificamos com ele, e sim examinamos o conteúdo misterioso de sua personalidade, a sua experiência já não é a mesma dos filmes clássicos, os quais, por outro lado, à rigor despertam no espectador um encanto complacente pelos personagens.



A sensibilidade que Cidadão Kane nos incita, em outras palavras, é diferente daquilo que poderíamos chamar de sensibilidade clássica; uma vez que somos estimulados a perceber a construção de cada relato, de notar que cada caracterização de Kane é, antes de tudo, uma encenação, um retrato e não um fato, com efeito somos estimulados a perceber que estamos, efetivamente, assistindo a um filme. Logo, eis aqui o principal motivo pelo qual Cidadão Kane é tido como o marco histórico da transição do cinema clássico para o moderno: ao tornar o seu espectador consciente de que está assistindo a um filme, sobretudo numa narrativa que não se resolve de maneira perfeita, mas cujo mistério perdura para muito além do seu fim definitivo, o filme exige de nós, precisamente, a sensibilidade moderna.


Ademais, é especialmente marcante, também, a complexidade estética da encenação elaborada por Orson Welles, que também performa como o protagonista titular, o nosso objeto de estudo antropológico (adequado o casting, dada a capacidade magnética e completamente sedutora de discurso do então jovem ator e diretor). Aquilo que o roteiro de Manckiewicz sugere – a ambiguidade na definição da personalidade de Charles Foster Kane, com o intuito de estudar o magnata do mundo corporativo –, Welles realiza na forma de cinema, em planos cujas composições dispersam o olho do espectador pela sua superfície, jamais sugerindo de maneira precisa qual é o seu ponto focal de interesse. Isto, com efeito, nos mantém sempre em dúvida para onde devemos descansar o nosso olhar enquanto a cena se desenrola – mantemo-nos, portanto, em constante alerta, em constante busca para abarcar toda a informação que um único plano nos apresenta.



“Ponto focal de interesse”, aqui, parece ser uma expressão chave: o que permitiu com que Welles, ao lado do emblemático diretor de fotografia Gregg Toland, compusesse as suas labirínticas imagens, foi principalmente a inovação técnica de um filme mais sensível à luz, o que permitia que cenas em alta profundidade de campo – isto é, cenas em que todos os elementos do cenário estão em foco – fossem gravadas em cenários fechados, com menos iluminação.


Submissa ao gênio criativo de Orson Welles, tal inovação possibilitou a criação desses planos mais complexos, que, no contexto de “Cidadão Kane”, reforçam a postura de investigação que a narrativa exige. Portanto, o que temos aqui é uma complexificação das possibilidades dialéticas do plano cinematográfico a serviço do estímulo à ciência de se estar assistindo a um filme, pela natureza expressiva do longa em questão; um estímulo, em outras palavras, à sensibilidade moderna na experiência cinematográfica.


Uma obra de grande impacto cultural, que é instigante pelos seus próprios méritos de desmistificar a figura do magnata do mundo corporativo, tão cara e emblemática à cultura norte-americana, que demarca a transição do clássico ao moderno e, ainda, um amadurecimento das possibilidades dialéticas da expressão cinematográfica; ainda nos dias de hoje, “Cidadão Kane” permanece paradigmático para a história do cinema.



Lista de favoritos do redator

1. Cidade dos Sonhos | David Lynch, 2001

2. Corpo Fechado | M. Night Shyamalan, 2000

3. Aquarius | Kleber Mendonça Filho, 2016

4. Meu Jantar com André | Louis Malle, 1981

5. Os Catadores e Eu | Agnès Varda, 2000

6. Aurora | F. W. Murnau, 1927

7. Um Corpo que Cai | Alfred Hitchcock, 1958

8. A Paixão de Joana D'Arc | Carl Theodor Dreyer, 1928

9. A Rosa Púrpura do Cairo | Woody Allen, 1985

10. O Espelho | Andrei Tarkovsky, 1975

11. Cidadão Kane | Orson Welles, 1941

12. Ladrões de Bicicleta | Vittorio de Sica, 1948

13. O Iluminado | Stanley Kubrick, 1980

14. O Sétimo Selo | Ingmar Bergman, 1957

15. Pai e Filha | Yasujiro Ozu, 1949

16. Viagem à Lua | Georges Meliès, 1903

17. Dr. Fantástico | Stanley Kubrick, 1964

18. A Aventura | Michelangelo Antonioni, 1960

19. Ata-me! | Pedro Almodóvar, 1990

20. Jogo de Cena | Eduardo Coutinho, 2007




Esse texto pertence ao nosso especial Favoritos da Cine-Stylo: Uma lista com os filmes prediletos de nossos redatores e 11 textos para discorrer um pouco dessa paixão. Acesse!


 

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