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Também Fomos Felizes (1951) | As famílias universais de Ozu

Tal qual a crônica literária, Ozu nos mostra breves panoramas de famílias japonesas do pós-guerra sob a perspectiva dos temas mais universais nas relações humanas



Também Fomos Felizes (1951), é um retrato honesto de tudo aquilo que é mais humano: o amor. Essencialmente, o filme não se define por grandes acontecimentos. Assim como a vida de seus personagens, convivendo na sala, cozinha ou mesa de desjejum, almoço e janta, onde as decisões são tomadas, crianças são educadas e todos os familiares interagem coletivamente.


E essa parece mesmo a premissa do diretor: mostrar que a vida é feita, por mais brega que seja o termo, de “pequenos momentos” e dentro desses espaços coletivos, ou intermediários, da casa de uma grande família. É desse modo, e nestes espaços, que acompanhamos todo o universo desta família, parafraseando Tolstói: que se parece com qualquer outra família feliz.


Ozu, como um diretor de ficção, é um excelente documentarista. Seus filmes são, para além de um simples cotidiano familiar, um retrato de uma sociedade japonesa burguesa em decadência. Ainda, além dessa “temática” central na filmografia do diretor, Também Fomos Felizes é um filme que congela momentaneamente o tempo para o espectador contemporâneo numa janela honesta para 1950 quando nós, mulheres, tínhamos que nos desvincular por completo de nossas famílias – seja por documentos oficiais, identidade enquanto indivíduo ou de forma física, ao deixar de dividir o mesmo espaço. Assim, deixávamos de coexistir no mesmo ambiente, que, segundo Ozu, seria o principal fator ou elemento base para o convívio familiar.



Mas essa dissolução familiar, definitivamente, não era um processo indolor e natural, como vemos constantemente ser reforçado em filmes hollywoodianos, mesmo os mais “moderninhos” – como comédias românticas dos anos 1980 a meados dos anos 2000 – onde a protagonista passa por esse processo de separação com um simples abraço e algumas trocas de lágrimas com seus parentes.


Em Ozu, Noriko Mamiya sofre. E toma a decisão de casar-se sozinha, embora todos participem de uma conversa sobre essa situação e demonstrem apego ou afeto por ela, bem como tristeza genuína com sua partida. Talvez uma das cenas mais dolorosas da filmografia de Ozu tenha sido o plano frontal do pai de Noriko, que segue após a conversa com todos, com um sorriso doloroso dizendo à filha que se encontrariam futuramente. Não há lágrimas e abraços calorosos, mas a simplicidade de palavras que tentam se conformar com a situação. E essas machucam bem mais.


Uma família realmente feliz é difícil de encontrar no cinema, já que uma família traumatizada rende muito mais bilheteria. Mas Ozu foi um diretor sensível e que sabia muito bem a potência de famílias felizes em diversos espectros do que seria a felicidade em cena. Embora a família Mamiya tenha, talvez, a relação mais bonita entre todas elas.


O diretor também assumiu que sua intenção era mesmo criar todo o ambiente e estabelecer um ciclo de vida familiar a partir de Noriko. E assim, trabalhar o imprevisível do mundo que existe fora da casa e da família, ressaltando também a permanente transformação e adaptação nesse mundo. A partir da personagem, percebemos rupturas do que era sólido, a formação de algo novo que gera dúvidas e também a possibilidade de amar mais além daquilo que já conhecemos.



Em muitos aspectos, Também Fomos Felizes, talvez, seja o ápice das investigações do diretor sobre os espaços intermediários\coletivos domésticos e emocionais, pois dentre todos os seus filmes que retratam as dissoluções familiares, este filme é um dos poucos que trabalham este evento do início ao fim e com personagens perfeitamente balanceados entre o pré e o pós guerra.


Para além das temáticas do filme, a sutileza está também na sua construção estética, no fluxo do filme. Com o enquadramento baixo dos planos, a câmera traz um olhar de simplicidade e nos transporta para um local de alfabetização visual japonesa a partir das ilustrações de ambientes internos. Além disso, essa posição constante de câmera traz o espectador para perto da narrativa e dos personagens, especialmente com planos frontais em meio aos diálogos. O que, não necessariamente, seria uma quebra de quarta parede, mas um transporte desse espectador para o transe do filme. Fazendo-o identificar aquela família como um espelho da sua, ou, minimamente, se identificar com alguns personagens. Essa narrativa do cotidiano de Ozu nos espelha uma intimidade e o reflexo de nossa rotina e relações interpessoais.


Por fim, o filme tem um ritmo excelente. E apesar de se tratar da história de uma dissolução familiar, não carrega uma melancolia vagarosa como Tokyo Story (1953), pelo contrário: é um filme alegre e vivo, onde os sorrisos são sinceros e pouco utilizados para demonstrar a dor de decisões que não queriam ser tomadas, como no filme de 1953. Os sentimentos, as conversas e as interações da família Mamiya são sinceras, assim como o filme também é honesto e descarado ao que se propõe. Isso é lindo.


 

Nota da crítica:


 

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