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Noites Sem Dormir (1994)

A construção enigmática de corpos flutuantes através do olhar.


Corpos, silêncios, olhar: palavras que se tornaram sinônimos da obra de Claire Denis. Mas mesmo antes de intensificar sua investigação sobre a dilatação dos planos sobre os corpos e como eles se tornam quase palpáveis quando elevados à superfície da imagem, Denis começou observando como esse olhar transforma o corpo e como o corpo conduz a estrutura de um filme a partir desse olhar em Noites Sem Dormir (J’ai Pas Sommeil, 1994), filme menos conhecido de sua obra, mas não menos esfíngico e fascinante que suas realizações mais conhecidas. O que sonda o filme é a presença desses corpos-fantasmas, pessoas-zumbis que perambulam pelas ruas parisienses à procura de algo, alguma coisa ou alguém.


Na primeira cena de Noites Sem Dormir, Daïga (Yekaterina Golubeva), a imigrante lituana, acorda as ruas parisienses, despertadas do silêncio e surdas para o que acontece longe do seu sono: um assassino de idosas está a solta pela cidade.


Daïga, acima de tudo, é aquela quem vai conduzir nosso olhar quando anda pelas ruas observando outras pessoas nas altas horas da noite, enchendo seu pulmão do gélido ar noturno que abriga os inquietos: ela entra em um cinema pornô apenas para rir do filme, caminha pelas ruas, conhece outros moradores do prédio em que se abriga debaixo da asa da tia (uma velhinha cujo senso de perigo se intensifica lentamente quando percebemos que o assassino mora logo ao lado). Enquanto isso, conhecemos outros moradores, outro cosmo particular que acompanharemos pelas noites e manhãs: Théo (Alex Descas, colaborador assaz de Denis), um pai solteiro que precisa suportar os conflitos com a esposa e cuidar seu filho pequeno, e que oferece abrigo ao irmão mais novo, Camille (Richard Courcet), um transformista que habita a vida noturna parisiense e que logo descobrimos ser o assassino de velhinhas junto de seu namorado.



Se cruzando através de desencontros, Camille e Daïga não se conhecem, mas parecem entrelaçados por um fio invisível que os fazem colidir um com o outro, o que lembra a própria relação de Denis com a figura real que inspirou o personagem de Richard Courcet, o serial killer francês chamado Thierry Paulin, responsável por uma série de assassinatos de idosas nos anos oitenta, na França. Ela conta: “Essa história voltava o tempo todo sem que eu corresse atrás dela, havia sinais demais”.


É no corpo, nos gestos e nos silêncios de Camille que Denis intensifica esse interesse analítico em observá-lo flutuar pelos espaços, um fascínio pelo modo em que Richard Courcet se move pelo cenário. Nesse sentido, a tração e peso de seu corpo se desvanece a cada vez que surge em cena pelo olhar de outro. E de quem é o olhar se não o de Daïga? Quando põe os olhos em Camille pela primeira vez, o fascínio é quase vouyeristico, como se fosse um detetive de film noir obcecada em perseguir o culpado. Daí em diante, a pulsão em observá-lo (entra em seu quarto de hotel e se fascina pelas suas fotografias) não tem a ver com sentimentos passionais ou fraternos, vai além e aquém; algo mais, algo que alimenta o desejo em desvendar o mistério: sem backgrounds de infância sofrida (“Você era um menino tão bom”, diz a mãe de Camille), em nenhum momento sabemos o porquê de Camille cometer os crimes; revela-los nada traria de bom para a aura esfíngica de Camille (“Meu irmão era um estranho para mim”, confessa o irmão mais velho). Por isso pode ser difícil desvendar as intenções de ambos. E quando se encontram e interagem, é como se soubessem de tudo isso, quase como duas estrelas distantes que se veem ao longe e se tocam pela primeira vez, um contato tão intenso quanto efêmero.


Talvez isso ganhou mais corpo agora... Em todo caso, há agora mais corpos nesse filme. Não é piada, a tomada dos corpos é de fato a única coisa que me interessa. É intimidante demais, sobretudo quando é o corpo dos homens. Eu não posso dizer que tinha medo do tema de Noites sem Dormir, mas do começo ao fim, fui me colocando questões sobre o olhar que se poderia ter sobre um projeto como esse. O corpo de delito, o corpo de Camille, foi evidentemente um objeto de observação, um mistério. E era preciso olhá-lo dessa forma.

- Claire Denis


Para Daiga, Théo (o interesse narrativo neste daria pano para manga para outra discussão) e Camille, se manter acordado é uma batalha contra os próprios demônios, lutar contra a inquietação da mente, do corpo, enfrentar a própria vastidão da noite a qual são jogados ao ermo, inevitavelmente absorvidas pela solidão interior. Mas também é esbarrar com o desconhecido e se fascinar por ele. Uma letargia urbana filmada com tanta sobriedade, uma câmera que se curva diante dos momentos (um encontro na madrugada, rir de um filme, dançar com a família, performar em uma boate) antes de retornar ao centro e que captura o instante exato em que termina a madrugada e começa a próxima manhã, a zona morta da consciência.


Nota do crítico:


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