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Maçãs no Escuro | 27º Mostra de Cinema de Tiradentes

O senso de humor e a humanidade que os personagens trocam entre si é o que faz com que a experiência de os assistir seja tão prazerosa



Enquanto muitos retratos documentais se focam em figuras já conhecidas pelo público em geral, Maçãs no Escuro se diferencia por acompanhar uma figura underground de teatro que em certo momento da narrativa é questionada por um personagem de porquê, como admirador de teatro, ele não ter ouvido falar de seu nome ao longo dos anos. E esse nome é o de Edson Aquino, um dramaturgo e fundador da companhia de teatro chamada Teatro Arruça, e cuja trajetória é acompanhada no período em que ele completa 35 anos de carreira artística. 


Abrindo o longa com uma entrevista com Edson, que se torna cômica pelo fato dos entrevistadores falarem em inglês e serem traduzidos erroneamente, este encontro introduz o espectador a dois elementos centrais de seu grupo teatral: o caráter dionisíaco de suas atividades em conjuntos, com seus ensaios e suas maneiras de expressar coletivamente uma potência artística, e a dificuldade financeira que eles enfrentam por serem tão desconhecidos, o que é exemplificado quando o inquilino do apartamento tem que expulsar o grupo do local pela falta de dinheiro.


A dicotomia entre o desejo artístico de se expressar, de perseguir o que se ama e se utilizar da arte como objeto de autotransformação, e a dificuldade diária que os personagens enfrentam devido a entrevistas mal sucedidas, dificuldades financeiras e domésticas, e também com a própria dúvida de querer continuar indo em frente diante de tantos obstáculos, é o que anima o motor central do filme. Se trata de um retrato intimista de um homem e de um grupo que não teve ao longo das décadas o reconhecimento merecido. 

Mas a maneira como os personagens contam suas estórias não é desenvolvida de forma trágica, e o senso de humor e a humanidade que eles trocam entre si é o que faz com que a experiência de os assistir seja tão prazerosa. Há uma qualidade de poder rir de si mesmo, de seus próprios fracassos ou mal encontros, que não busca em nenhum momento algum tipo de piedade, pelo contrário, o humor no filme é uma maneira existencial deles resistirem em frente das adversidades.  


Esse caráter cômico do filme é acentuado pela aspecto quase semi-mockumentary de sua abordagem, há um hibridismo entre relatos que parecem ser realistas (como quando o protagonista digressa sobre seu passado com uma amante) e momentos em que a encenação parece ser mais direta e ignorar o princípio de realismo documental, quando por exemplo uma das integrantes do grupo tem que ir para a casa de Edson para convencê-lo a ir a uma apresentação, e quando o protagonista é assaltado na rua (e cujo assaltante desiste do ato após ver que ele não tem nenhum dinheiro). 

É um filme que é ao mesmo tempo um relato íntimo dos integrantes deste grupo ao mesmo tempo em que realiza uma exploração da cena artística de São Paulo através das longas andanças de Edson Aquino pela região, com a câmera capturando suas memórias e recordações através de comentários dele enquanto vaga pela cidade. A abordagem lembra muito um cinema direto e vérité ao mesmo tempo em que mistura elementos claramente encenados. 


E se Edson pode não ter o reconhecimento artístico que merece, a força de sua resistência pelo caráter autotransformador da arte (em certo momento, ele menciona como o objetivo de sua entrada teatral é uma busca de ir além de si mesmo) é extremamente potente por revelar que o verdadeiro objetivo não é um sucesso, mas uma transformação através do ato processual de criar coletivamente um espaço, uma cena. O filme consegue criar um sentimento de justiça e de dignificação de sua trajetória, com um senso de humor ácido e uma humanidade que faz com que esta obra seja uma das mais marcantes das que foram exibidas na 27º Mostra de Cinema de Tiradentes.



Este texto faz parte da cobertura da 27º Mostra de Cinema de Tiradentes.


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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