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Marte Um (2022)

Confira a crítica do representante brasileiro no Oscar 2023



Em determinado momento de “Marte Um” a personagem Tercia (Rejane Faria), em uma espécie de epifania após descobrir que havia escapado de um trágico acidente de ônibus que teria tirado a sua vida, afirma estar viva. Essa simples linha de diálogo me fez arrepiar dos pés à cabeça no cinema. Aliás, só de lembrar me arrepio de novo, tamanha é a força contida nessa afirmação. O novo longa do cineasta mineiro Gabriel Martins é um retrato de uma família brasileira vivendo nos últimos anos. Uma família que, a princípio, não possui nada de especial. Não tem superpoderes, não tem muito dinheiro, não é testemunha de grandes acontecimentos. Eles só buscam sobreviver no Brasil contemporâneo.


Essa família é composta por quatro integrantes, a já citada Tercia, mulher, preta, diarista e mãe, Wellington (Carlos Francisco), porteiro/zelador de um prédio de luxo em Belo Horizonte, pai e alguém que luta contra o alcoolismo, Eunice (Camilla Damião), filha do casal, estudante de direito no último semestre em uma universidade pública e Deivinho (Cícero Lucas), irmão e filho, pré-adolescente, ótimo no futebol mas que sonha em se tornar cientista para poder viajar até Marte. É isso. Quase duas horas assistindo a essa família enfrentar os problemas mais cotidianos que se possa imaginar. Mas então, o que esse filme tem de tão especial? É que ser de classe média/baixa e viver no Brasil atual é com toda certeza uma grande aventura.



É bem verdade que “Marte Um” tem um forte teor político. Isso fica claro em certas passagens onde momentos da história recente do Brasil são pontuados através das matérias jornalísticas que são exibidas de maneira diegética, na TV da família protagonista. Mas o interessante aqui é como esse discurso se integra em sua narrativa de forma muito natural. Quando escrevi sobre “Medida Provisória” (2020) mencionei a descrença que o filme tem em sua própria força imagética, colocando todo o peso de sua narrativa no enunciado textual. Lá os personagens precisam verbalizar seus conflitos, muitas vezes através de frases de efeito saídas diretamente dos posts do “Quebrando o Tabu”. O contrário acontece em “Marte Um”. As imagens são tão importantes que um simples “estou viva” consegue trazer à tona no final uma potência que vem de todas as questões trabalhadas pelo filme ao longo de sua duração. Não é preciso explicação verbalizada ou letterings que tornem explícita a temática do filme, está tudo ilustrado pela força do cinema.


Ao mesmo tempo em que o longa trabalha a dureza da realidade através de vários dos problemas sociais mais discutidos no momento - como a derrocada na economia brasileira, racismo, precarização do trabalho, saúde mental, religiosidade e questões LGBTQIA+ - ele possui um olhar tão carinhoso com os seus personagens, que tudo isso é enfrentado com beleza. Não existem maniqueísmos, heróis e vilões. A complexidade e as contradições do nosso país, que perpassam por todas essas questões, são expostas, mas no final das contas são as nossas qualidades que se sobrepõem.

Isso não tem a ver com “passar pano” para personagens que apresentam atitudes problemáticas, muito pelo contrário. Gabriel apresenta em sua construção narrativa a delicadeza para conseguir demonstrar como certas estruturas são replicadas em situações cotidianas e condená-las sem que para isso tenha que vilanizar os personagens que as reproduzem. Toda construção de Wellington é um ótimo exemplo em relação a essa habilidade do diretor e roteirista. O patriarca da família apresenta comportamentos machistas e homofóbicos que se expostos no tribunal do Twitter certamente lhe renderiam um belo de um cancelamento. Martins, contudo, o retrata com um olhar absolutamente amoroso e sensível. Wellington não é reduzido a esses comportamentos, ele é apresentado em sua complexidade e aí, nós espectadores, temos a possibilidade de compreendê-lo e de nos emocionarmos com a sua disposição final em “dar um jeito” (referência pra quem assistiu).



Ainda que o pai seja apaixonante, há um protagonismo evidente das personagens femininas. É em torno, principalmente, dos conflitos de Eunice e Tercia que a trama se desenvolve. Isso porque, em grande parte das casas brasileiras as mulheres realmente assumem uma posição de protagonismo. São elas que, muitas vezes sozinhas, lideram suas famílias e lutam por dignidade. Mãe e filha no filme são responsáveis por apresentarem conflitos bem próprios das gerações às quais pertencem. A mãe que se sente sobrecarregada com o peso que carrega sobre suas costas. A filha que precisa se afirmar e encontrar o seu lugar no mundo. A alma de “Marte Um” está nessas duas mulheres pretas, que, aliás, são interpretadas de maneira irrepreensível por duas atrizes extremamente competentes.


Por fim, o segundo filho, Deivinho, representa o futuro. E é aí que o longa realmente se destaca. É um futuro repleto de esperança e que, mesmo com todas as dificuldades, não se priva de sonhar. E daí que Marte fica longe? E daí que poucos vão tripular a expedição que dá nome ao filme? E daí que estamos passando por um momento triste em nossa estrutura político/econômica? Em tempos de papo de “coach” e “empreendedorismo”, “Marte Um” consegue ser otimista sem cair no discurso fácil. Consegue reconhecer todas as dificuldades, toda a estrutura de opressão, sem perder o otimismo. É o filme do qual precisávamos neste ano difícil. Que fala de família, sem hipocrisias. Que fala da nossa pátria, sem ufanismo. E que restabelece a ideia libertadora de que todo brasileiro pode e deve sonhar um futuro melhor.


 

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