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Gravidade (2013)

Alfonso Cuáron orquestra um grandioso filme que se orienta na sensibilidade do corpo e no impacto da narrativa visual, mas que sofre de uma fraca dramaturgia.



A câmera de "Gravidade" movimenta-se em uma espécie de "fluidez rígida", muito semelhante à movimentação da figura humana no espaço. Assim, a plástica do filme assemelha-se ao próprio movimento de sua protagonista, rumando à deriva pelo Espaço.


O filme todo, na realidade, orienta-se pela aproximação do corpo da protagonista com o olhar e sensações do espectador: seja por suas movimentações de câmera alinhadas com o corpo de Sandra Bullock, ou pelas câmeras subjetivas, close-ups e uso subjetivo do som que nos coloca nas entranhas dessa mulher, como quando ouvimos os batimentos cardíacos da personagem após uma sequência estonteante.


Mas ainda que consiga, imageticamente, orientar toda essa aproximação com a protagonista, o mesmo não ocorre de maneira tão satisfatória em sua dramaturgia. Ryan Stone (Sandra Bullock) parece ser impedida de alcançar seu papel máximo como corpo e espelho do público, isso porque tem, em diversos momentos, seu protagonismo roubado ao ser delegada a uma posição infelizmente comum à mulher no cinema: a vítima em apuros a ser salva por um homem.


Como Laura Mulvey coloca em seu texto "Prazer Visual e Cinema Narrativo", mesmo quando são protagonistas, as mulheres têm seu papel roubado na estrutura mainstream do cinema. É aí que surge a personagem de George Clooney e sua presença inconveniente, que, mesmo quando surge apenas como um delírio de Stone, ainda assim, funciona como um Deus Ex Machina que pensa pela protagonista o que ela não conseguiria pensar sozinha para se salvar.



Além disso, o drama pessoal de Stone em relação à morte de sua filha é um tanto jogado, parecendo mais uma exposição para alcançar a "metáfora" final desejada por Cuarón. A cena em que a personagem de Clooney aparece em um delírio mais uma vez carrega essa exposição. Como se já não fosse claro, era preciso colocar na boca de uma personagem que Stone "não queria mais viver pois sua filha morreu".


Daí até o final, articula-se um drama que caminha próximo ao que o Shyamalan faz em seus filmes: a superação de um trauma/sofrimento pessoal a partir da experiência fantástica (e toda a viagem espacial de Stone acaba sendo, essencialmente, uma encenação de fantasia). Porém, apesar de resolver isso mal dramaticamente e de forma expositiva, Cuáron ainda consegue articular muito bem suas metáforas visuais.


Nos momentos finais do filme, quando Stone cruza o caminho da desistência até a vontade máxima de viver, figuras espirituais surgem explicitamente em closes (Cristo na nave russa e Buda na nave chinesa), mas de forma que se relacionam com a lógica interna de cada plano do filme, uma lógica que permeia todo o longa e potencializa-se ao final: estou falando de uma organização grandiosa dos elementos no mundo do filme, cada composição é milimétrica e transmite o senso de que uma força maior e Bela organiza o mundo no qual Stone cresce através de sua jornada.



Assim, apesar da solidão de Ryan (evidenciada na estrutura da história mas também visualmente - não apenas closes compõe o filme, como também planos extremamente abertos que evidenciam sua pequeneza diante do vazio), tal solitude parece preenchida por um senso de orquestração superior.


Essa organização aparece tanto nos aspectos visuais como na dramaturgia que, essencialmente, foca na evolução do drama pessoal de Stone - que, talvez, se realmente funcionasse como nos filmes de Shyamalan, poderia transformar "Gravidade" numa obra-prima.


Há, ainda, ao final, mais algumas excelentes articulações visuais que, apesar de explícitas, comunicam num nível sensorial e intelectual muito mais estimulante do que as tentativas metafóricas expositivas pelos diálogos: Stone sai do vazio e imensidão do Espaço, encontra forças para, como uma bola de fogo (sua nave caindo rumo à atmosfera) rumar pelo céu em sua nova ânsia pela vida, experimentando o renascer do fogo e a purificação da água (quando enfim retorna à Terra), reconectando-se com a natureza após sua jornada de sobrevivência.


Assim, ao fim do filme, Ryan Stone reconecta-se com elementos primários e essenciais que simbolizam muito bem sua nova percepção da intensidade e da alegria que é viver. Metáforas claras mas não óbvias, que funcionam em diversas camadas - intelectual, sensorial, plástica.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.

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