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Crítica - Onibaba (1964): Seus avós transam, sim!

E Deus abençoe o cinema japonês!


Onibaba

Emitir uma opinião sobre religiões e culturas que não são suas, ou se tem pouco conhecimento sobre, é uma tarefa difícil. Especialmente, com um recorte histórico tão marcado por sofrimento e diversos conflitos, como a Guerra Civil japonesa. Isto posto, não estou apta a contribuir com reflexões mais profundas sobre o valor do filme enquanto drama histórico, mas algo me chamou muito a atenção nesse longa de Kaneto Shindô: peitos, male gaze, tabu\desejo e envelhecimento da mulher. Esses quatro temas caminham brilhantemente emaranhados no decorrer do filme, mas tentarei fracioná-los o quanto puder a fim de esclarecer o que foi assistir Onibaba (1964)


Vamos começar pela pior parte, pois é necessário, primeiro, compreender como o filme enxerga mulheres e como o filme quer que o espectador as veja; claro que há certas variações desses dois tipos de olhar em seu decorrer, mas é importante diferenciá-los. Iniciamos o filme com uma senhora e uma jovem que matam e saqueiam homens para vender seus pertences no mercado paralelo em troca de comida, a moeda mais inflacionada e escassa durante uma guerra. 


Mas já nos primeiros minutos de filme, nos deparamos com a opressão de gênero das personagens em relação ao seu comprador, Ushi – que, por sinal, tem nome ao contrário das duas mulheres. Para ele, há valor nos objetos, trajes e espadas, assim como no corpo feminino. Ushi não é apenas um “comerciante”, mas um homem. Ele vê as duas mulheres como fornecedoras, mas a qualquer momento podem também se tornarem, ao seu olhar, num bem de consumo, um objeto que ele usa e faz pagamento por esse uso.


Assim, o filme coloca uma lupa sobre um ambiente de xogunatos onde o espectador pode focar nos conflitos para além do fronte, mas também observar o local da mulher na situação do campo feudal. Apesar de ser um lugar social que não varia tanto do campo para uma cidade ou de uma guerra para um Estado existindo em perfeita harmonia interna e externa.


Apesar de certas inconsistências do olhar, Onibaba (1964) tem algo que parece ser um debate até robusto sobre gênero, mas em especial sobre a mulher. Esse filme deixa vazar um male gaze desconfortavelmente estranho. Um olhar que deduz em alguns momentos que o espectador seja também um homem, pois há cenas e breves momentos onde a beleza e a plasticidade estética entregam a fragmentação do corpo feminino desunido do corpo humano para esse espectador. Como, por exemplo, na primeira cena de uma transa entre os personagens, onde não há apenas o trabalho da câmera, mas da iluminação – que aliás é belíssima durante o filme como um todo. Mas que deixa a desejar no controle do olhar sobre o corpo feminino sob estudo. Naquela primeira cena a dois corpos humanos, até então, e os dois rostos dos personagens aparecem em quadro, no entanto o foco da luz – o seu holofote – é fixado no perfil e um seio da atriz.


Neste momento, o diretor, a câmera e a luz querem que o espectador veja aquele seio não apenas como carne humana num corpo fêmea desejado pelo personagem, mas como fragmento feminino desejado pelo espectador. Isso ocorre também no close do caminhar fragmentado da jovem quando não é apenas o personagem que a observa, mas também o espectador. Aí temos o desejo sobre aquela fragmentação de corpo transmitida para o espectador pela câmera. O que definitivamente soa estranho quando o objetivo do filme parece fluir mais para o desejo pelo prazer mútuo entre corpos jovens e o medo impulsionado pelo misticismo do pecado e inveja etarista. 


Diferente de outros momentos em que aparecem mamilos de corpos humanos fêmeas e machos, seus troncos de costas e frontais. Nesses momentos o seio feminino é compreendido como parte do corpo humano natural e livre de tabus livre de desejo.  Neles, os corpos geralmente aparecem inteiros sem qualquer pretensão estética do posicionamento do corpo em cena. É um corpo mais  confortável e há mais naturalidade em seu posicionamento e movimentação em cena. 


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Avançando um pouco mais no tema do olhar, se tem algo que japoneses sabem filmar é sexo. E praticamente tudo na verdade, mas o sexo, no cinema e arte sequencial japonesa, parecem ter mais maturidade na sua alfabetização visual (apesar de ainda se ter uma cultura muito falo centrada). E o filme também deixa claro que o centro de poder é o homem, e que muito embora o centro do prazer seja também o falo, ele é dissociado do macho. 


Tome um exemplo: em cena, uma árvore para a visão de uma senhora não é apenas mais um elemento da natureza, mas seu objeto de desejo onde ela concentra seu prazer. Uma coisa bonita não presente somente em Onibaba, mas também em outros filmes japoneses à época é a diversidade de toques, as partes do corpo desejadas e maior proatividade feminina no ato em tela se comparado a grande maioria dos filmes ocidentais. 


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Assim, em Onibaba, é importante também ressaltar o que parece  ter sido o ponto central da obra: o desejo e a inveja. Sendo que esse desejo e a animalidade\instinto andam próximos, especialmente neste longa. Mas seu tema se mostra com o retorno de um homem que estava na guerra tão longe daquele ambiente e que parece ter perturbado a realidade das duas mulheres com a disputa do desejo sobre o outro. Dessa forma, embora o recorte histórico seja de uma guerra e os personagens vivam  praticamente como animais, a personagem mais velha começa a apresentar resquícios de amarras sociais de “decência”  condicionadas pela inveja do corpo jovem e desejado de sua nora. É aí que mora o demônio, o Oni. É no medo de não ser reconhecido como superior ou de não ser mais desejado. Ou mesmo na inveja pelo etarismo presente nesse desejo.


Então o demônio abre espaço para discursos de moralidade, associados ao místico, com o objetivo de punir a jovem por não ter um corpo indesejado como o da sogra, um corpo de pele firme, sem rugas e marcas do tempo. A sogra cita até mesmo ideias similares ao inferno ou algo que se aproxima mais de um ambiente pós-vida de punição cristã, algo bastante incomum no cinema e cultura japonesa. Assim, o ato sexual torna-se sinônimo de pecado e passa a ser temido pela  jovem e não mais compreendido como um hábito comum e de fonte no desejo humano mais primitivo. 


Por fim, Onibaba é um filme que nos mostra  a triste realidade do  etarismo na vida sexual como também na vida sexual das mulheres durante o período de guerra e a dor do sentimento de não desejo, do tabu sobre o prazer e da possibilidade do abandono. Daí o medo da solidão e da fome expressado pela sogra. na primeira metade do longa. Sem mais delongas, Shindô foi capaz de criar uma obra que vale ser analisada mais profundamente e estudada, não apenas pelo seu valor histórico, mas, especialmente, por seu potencial brilhante de alfabetização visual para cenas eróticas, pornográficas, de ação e de terror. Sendo essa última categoria executadas de forma tão brilhante que chegam a suspender o batimento cardíaco sem jumpscares desnecessários e baratos. Reforço ainda a potência das suas energéticas discussões de gênero – ainda me questiono se originalmente existem –, tabu, prazer e etarismo. Assim, mesmo com certas inconsistências de manipulação do olhar presentes, geralmente não tem como errar com o cinema japonês. Onibaba é um deleite.


 

Nota da crítica:


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:


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