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Como Era Verde o Meu Vale (1941)

Síntese de seu estilo, Como Era Verde o Meu Vale reflete a sensibilidade de John Ford diante das esferas sociais de sua época em um drama que eleva ao máximo a potência da decupagem clássica.


No livro Práxis do Cinema, o crítico Noel Burch aponta uma “verdade” aparentemente óbvia: visto que, mesmo quando nosso olhar é direcionado para um ponto específico de maior atenção num plano, vemos sempre a composição do quadro como um todo. Portanto, seria preciso um diretor compor seu quadro “a todo instante e de forma completa”. Embora isto possa parecer um objetivo almejado por quase qualquer diretor, após assistir “Como Era Verde o Meu Vale” sinto que nenhum outro na história do cinema entendeu tão bem este princípio quanto John Ford.


Não é apenas a beleza composicional de cada um de seus planos, mas o quanto cada imagem é marcada de vitalidade, de significado e de sensações em seus menores detalhes, seja no centro ou nos cantos dos enquadramentos. Ford é um clássico em seu sentido mais entusiasmante, buscando uma perfeição na mise-en-scène que não só é alcançada como se traduz na mais bela poesia dos costumes de sua época. Isso dada a sensibilidade que o diretor tem para reconhecer e transpor para a tela as diversas facetas econômica, política, social e espiritual de seu período, com os muitos conflitos que delas surgem, mesmo ao retratar uma época “distante” (como é o caso aqui, em que a história se situa no século 19 mas, como toda obra, diz mais sobre o período em que foi feita do que sobre aquele que retrata). Veja, logo ao início da obra somos apresentados a um conflito geracional e familiar envolvendo os filhos, trabalhadores da mina, e seu pai, igualmente um minerador, que, em seu conservadorismo (como um homem já velho no século 19), recusa as ideias dos filhos de organização da classe trabalhadora enxergando-as como ideais “socialistas”. Quando os filhos decidem sair de casa para defender suas crenças e direitos, o pai permanece rígido, reafirmando os seus próprios valores. Porém, a câmera de Ford posiciona-se levemente distanciada do pai, em primeiro plano, cabisbaixo, enquanto seus filhos vão pegar as roupas para irem embora, ao fundo do quadro. A dor de Gwilym Morgan (o pai, vivido por Donald Crisp) é visível com este simples raccord - esta mudança de plano. Acaba sendo um quadro que sintetiza muito da potência de Ford como um autor: primeiro que, na discussão entre pai e filhos, ele não afirma um “lado correto”, não há militância de maneira alguma. A dor de ambos (e a razão, ou pelo menos, os motivos pessoais) de cada um dos lados é sensibilizada na cena. Mas tudo isso de maneira sutil, como se a vida apenas se desenrolasse na tela, mas da maneira poética única aos grandes cineastas do cinema clássico (e qual o maior deles, senão John Ford?);



Daí, o filme perpassa por diversas tensões únicas a seu período na construção de dramas particulares: há os ideias marxistas de organização da classe trabalhadora, o conservadorismo do momento, a visão do trabalho como algo que dignifica (visão conservadora-protestante), cria valor (ideia marxista) e também destrói uma vida pacata com a modernização da indústria e aceleração da vida e dos costumes (compreensão romântica da contemporaneidade). Podemos ainda citar o fundamentalismo religioso e sua contraposição na figura do pastor Gruffydd (Walter Pidgeon), e até mesmo a sororidade feminina de Angharad, irmã do protagonista Huw e apaixonada por Gruffydd, que diante do sofrimento de uma mulher acusada de “pecadora” por viver um amor que não se encaixa nos moldes do radicalismo cristão acusa os diáconos de hipocrisia. A cena em que esta sororidade surge igualmente mune de ainda mais poder melodramático a relação entre a menina e o pastor, quando, ao falar sobre a “dor que uma mulher enfrenta ao ficar uma única noite sequer sem o homem por quem está apaixonada” o que está em seu subtexto é uma declaração de paixão a Gruffydd.


Contudo, o elemento principal do filme reside em como Ford apresenta estes dramas e tensões sociais enquanto celebra a existência coletiva dos moradores do vale. Não importa se é numa festa, celebrando com embriaguez e danças a vida em comunhão, num momento de organização sindical, num velório ou para fazer uma homenagem a algum morador que esteja sofrendo (como quando Huw e sua mãe estão de cama após a própria mulher ir enfrentar os trabalhadores que estavam contra seu marido e o conservadorismo que mantinha em relação às greves e acabar tropeçando numa poça de gelo). A certeza, mesmo diante de tantos conflitos, ao longo de boa parte da infância de Huw, é que a vivência coletiva sempre irá superar a reclusão individualista no lugar onde vive. Não à toa este é um dos filmes do Ford, dentre os que pude assistir até o momento, com as cenas de celebração e danças mais inspiradas (algo que o diretor mostra conseguir fazer com muita beleza, como no igualmente lindo Paixão dos Fortes), junto aos momentos de coro na cidade, seja cantando ou subindo a montanha para trabalhar nas minas. Ford vibra com a vida coletiva dessa cidade, sendo o que torna a existência individual mais alegre e suportável (ou mesmo, celebrável).


Portanto, o trágico no filme resulta de como o vale vai se tornando cada vez mais cinza com a invasão da fábrica e a consequente quebra com os costumes que uniam os habitantes em uma única irmandade pela desenfreada modernização industrial, de modo que a existência no vale passa a ser mais individual a cada novo momento. Aqueles que ainda prezam por uma vida em comunhão, como o pastor Gruffydd, começam a perder seu espaço. A morte de Gwilym Morgan, o homem que hospedava as maiores festas, banquetes, reuniões e todos os tipos de celebrações coletivas na vila, concretiza o fim de uma “era”, de uma vida mais alegre, lembrada pelo protagonista com nostalgia. Assim, a virtude que torna Gwilym, como diz seu filho, “imortal”, é a de valorizar a existência em comunhão, e não o isolamento; um valor que, na raíz do que é o “conservadorismo”, tem tudo a ver com a ideia de que há valores atemporais que, sendo quebrados pelo progresso irrefreável, levam ao enfraquecimento da alma, do coração. Isso é reforçado especialmente se entendermos a partilha como elemento característico do cristianismo. Deste modo, Como Era Verde o Meu Vale encerra-se de maneira tão conservadora quanto romântica, ao mesmo tempo que se sensibiliza e se encanta com todas as formas de existência - especialmente quando todos existem em meio de e para todos. Tudo isso a partir de uma mise-en-scène que preza pela delicadeza da construção imagética dos planos, em que cada gesto, movimento de câmera, personagem enquadrado e verdade não dita constituem a existência poética do filme.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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