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As memórias desnudas de devaneios de Annie Ernaux

Annie Ernaux, autora laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2022, reconstrói suas memórias individuais e coletivas na busca de retratar a vida e morte do próprio pai. O resultado é um relato absoluto em sua legitimidade, acerca da emoção e do luto presente no simples ato de rememorar



A escritora francesa Annie Ernaux, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2022 — e a primeira mulher de seu país a receber tal honraria —, possui no estilo de sua escrita um universo muito próprio. O caráter confessional de suas obras contrasta com o distanciamento que exerce enquanto autora; uma ambiguidade que se realiza na transcrição de memórias que possuem em si um teor tão singular quanto universal. Na composição de sua escrita, palavras adquirem forma e peso únicos, que se metamorfoseiam num profundo impacto emocional no leitor. Não é exagero, portanto, afirmar que sua literatura se pauta num princípio de comemoração. Rememorar a lembrança individual se torna um genuíno aceno à força do imaginário coletivo, de um tempo, pessoa ou lugar; aspectos que conferem à sua obra, em especial no contexto da sociedade francesa, um valor extremamente único.


Em uma de suas principais obras, “O Lugar”, de 1983, a autora parte do falecimento do pai para realizar um retrato social e afetivo de sua vida. A escrita de raiz piamente emocional, demasiado poética e alegórica, comum a obras que compartilham da mesma temática, é aqui abandonada por uma concisão não menos intensa em seu poder narrativo. A escrita em primeira pessoa, ausente de excessos, se faz acima de tudo por necessidade; Ernaux escreve por urgência, e não há nada em sua literatura que não seja carregado da mais profunda legitimidade. A princípio, tal característica pode aparentar uma perigosa contradição, mas a verdade é que emoção alguma é enxugada, pelo contrário, são exponenciadas ao grau máximo. A lembrança e o luto nus, em seu estado primitivo de dor e reflexão; coisas que Ernaux infere à escrita como ninguém mais.


O livro começa com a calma que antecede a tempestade. Lembranças que sobressaltam a mente e catalisam momentos anteriores ao acontecimento de eventos traumáticos. Um dia específico, que se junta ao outro, e que de repente tornam-se impregnados pelo poder destrutivo de uma memória posterior — os meses, semanas e dias que parecem prenunciar a mudança absoluta. Dali surgem as primeiras descrições acerca do universo que Ernaux nos insere repentinamente; hábitos, sensações e sentimentos que ditam a textura do cosmos que acabamos de adentrar.



A recordação da morte surge em seguida. É natural que a descrição dos tradicionais ritos mortuários — do atestamento do falecimento ao eventual fim dado ao corpo —, soem frios e ausentes de qualquer resquício de vida para o leitor, um personagem externo àquele lugar; porém, são esses mesmos eventos que surgem por primeiro nas mentes de quem o vive, pois embora sejam memórias sobre a morte, carregam em si o simbolismo que lembrança alguma em vida é capaz de quebrar. E é justamente por essa sucessão de procedimentos que a autora escolhe iniciar o relato de suas lembranças, como quem entende e aceita o papel que tais aspectos adquirem na conjuntura final da memória, tornando-se parte intrínseca do que a pessoa um dia foi, e do que sempre será.


A partir do falecimento de seu pai, Ernaux traça um retrato profundamente pessoal e, ao mesmo tempo, de feições tipicamente coletivas. Da origem humilde na Normandia narrada pela autora — regida por uma fervorosa criação na religiosidade e tradicionais costumes interioranos —, até o êxodo do ambiente rural, o primeiro trabalho como operário, o momento em que conheceu a esposa, a compra do estabelecimento no qual trabalharam durante toda a vida, o nascimento da filha; acontecimentos que formam no imaginário do leitor um emaranhado único, uma teia que tece gradativamente a figura de um pai — e tudo o que isso, por si só, representa na formação da autora. Uma poderosa combinação de lembrança pessoal alicerçada ao cenário social de uma França que se desenvolvia rapidamente. As guerras e o contexto político que atravessavam a sociedade francesa no século XX servem como pano de fundo na criação das memórias; uma relação mútua e inerente à concretude desses acontecimentos, bem como os efeitos por eles causados.


De certa forma, toda a reflexão proposta por Ernaux pode ser resumida como uma incessante busca por respostas, causas para determinadas consequências — como o afastamento ocorrido entre a autora e o próprio pai em algum momento de seu desenvolvimento. O caminho traçado pela autora na concepção dessas memórias deflagra, então, mais do que um simples panorama sobre quem foi sua figura paterna, mas também a gênese acerca de sua própria essência, e que de algum modo acaba por retratar também um sentimento muito pertencente à coletividade, embora enviesado sob a ótica de uma experiência pessoal. Nesse contexto, o processo de transformação social realizado pelos pais da autora — do rompimento com a criação interiorana ao estabelecimento de um novo estilo de vida intrinsecamente urbano (mas que se recusa a abandonar as características de sua própria criação, como a religiosidade) —, diz muito acerca de um novo tipo de família que surge concomitante ao desenvolvimento industrial em todo o mundo no século passado.



Uma delas é a minha própria família — ainda que o contexto sócio-político da França difira do observado em terras abaixo da linha do Equador —, esse processo muito ligado ao desenrolar do capitalismo moderno se mostrou presente (mesmo que com o habitual atraso de muitos anos em relação ao mundo exterior) de maneira integral na formação da nova sociedade brasileira. Resultado de uma industrialização tardia, as consequências, reflexões e questionamentos levantados com o advindo dessa geração “de transição” ainda são muito atuais. Meus pais nasceram em polos extremamente opostos de regiões brasileiras, um no nordeste e outro no sul, mas suas vidas se cruzaram na metrópole São Paulo quando ambos buscavam algum modo de ganhar a vida distante das barreiras interioranas que nasceram. Como fruto dessa geração, sou familiarizado às contradições evidenciadas por Ernaux em relação aos costumes que essas pessoas carregam em sua raiz, e o mundo que elas encontram fora de casa — o mesmo mundo em que seus filhos são criados.


O embate, porém, não ocorre apenas no choque geracional. As contradições se materializam também no âmago dessas pessoas que hoje conhecemos como pais, avós, tios e amigos. São eternos forasteiros; a criação obtida em casa soa distante, ao mesmo tempo em que os modos estritamente urbanos não os tomam por inteiro. Uma ambiguidade que eu, como filho de um tempo já estabelecido, pouco havia entendido, até o contato com as memórias do eu e do nós de Annie Ernaux. Assim, tudo torna-se insólito. A linguagem e a cultura do hoje são como membros de um corpo estranho ao qual nunca fazem realmente parte. A transmissão de valores, porém, permanece. E é dali que essa geração parece encontrar um ponto de reconexão com o seu passado e o seu futuro. Enquanto tudo muda, a dignidade vira uma sólida rocha em que se estrutura essa nova base familiar.


Dessa dicotomia Ernaux extrai seus momentos mais geniais. Afinal de contas, é tudo uma busca pela dignidade; e a questão em volta disso é sobre como alcançá-la. Para a geração dos pais da autora, bem como para os meus, isso se fazia principalmente pelo acesso às oportunidades que eles mesmos não tiveram. Mesmo crescendo sem educação formal, na maioria dos casos, havia um consenso geral acerca do poder único que essa ferramenta exerce na vida de um indivíduo. Nasce dali outra contradição. À medida que o acesso a um universo acadêmico gradativamente se expande para o filho, a relação para com o pai se enfraquece. As conquistas alcançadas são compartilhadas muito mais pela forma do que por seu conteúdo. Um entroncamento natural em uma relação sócio-cultural tão divergente; dois mundos estranhos um ao outro mas que se ligam por algo muito maior do que simplesmente sangue.



O entrave maior na narrativa surge dessa mesma dimensão. O uso da linguagem na relação com o pai, nas palavras da autora, é “motivo de rancor e de brigas doloridas, muito mais que o dinheiro”. Talvez por isso o enfoque do contexto social seja tão influente na significação de memórias tão pessoais. Nenhum ser vivo é exterior ao seu ser político, observação que Ernaux toma como princípio ao retratar a figura paterna. Mais do que meramente estética, o poder da linguagem na relação de ambos representava também toda a dignidade que custavam a manter viva. Afinal, falar e agir como “colono”, no contexto urbano que se apresentava, tomava para si um perigoso teor excludente, num já hostil ambiente social. O medo da vergonha moldava o caráter que a autora carregaria durante toda a vida. O medo de sofrer por “falar errado”, em diversos momentos, acarretou no medo de ser quem realmente era.


A descrição desses acontecimentos que marcaram a relação da autora com o pai culminam, novamente, em seu falecimento. Curioso como, após a morte, este se torna o evento primeiro e último da vida de um indivíduo, como se não houvesse vida antes disso que não possa ser resumida aos dados transcritos na lápide. Mas a verdade é que Ernaux vai muito além. Enquanto o luto corrói qualquer lembrança de vida, a autora luta para ressignificar memórias que integram a existência do próprio pai. Lembranças de morte ressonam mais alto que as de vida por fazerem parte de uma realidade que não necessita alteração; é a que se faz presente, bem na nossa frente. É necessário uma força extraordinária para retomar as de vida, voltar a um tempo enevoado pela morte que paira à espreita; e mesmo assim, ser capaz de romper toda obscuridade causada pela passagem do tempo, pela influência que o morrer exerce sobre o nascer, utilizando de uma luz com poder de cruzar o breu, mas que pode também cegar os olhos.


O caminho que Ernaux trilha não possui volta. São memórias que carregam mundos inteiros, pedaços do particular englobados pelo todo. Nesse retorno ao que sobrou do passado, a legitimidade basta e possui em si toda emoção e verdade que as palavras poderiam possuir; tanto para que se mantenha viva as lembranças, como para as destinar a um só lugar do imaginário coletivo. Seja como for, deixe que elas falem por si só: em toda nudez e lucidez que lhes são próprias.


 

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