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Terrifier e a arte mal educada

A resistência do exploitation



O sucesso de Terrifier 2 me conforta por reafirmar que as qualidades cinematográficas mais importantes aos olhos do público permanecem razoavelmente distantes do tecnicismo hollywoodiano, dos modismos e da auto-importância de certas grifes. Numa época em que o cinema gira em torno do marketing, os filmes de Damien Leone são refrescos deliciosos, porque não se preocupam minimamente com o que parece de bom tom para o mercado ou para a moral pública. Por mais contemporâneos que sejam, há algo meio anacrônico nesses filmes, algo que não pode ser encontrado em nada de Hollywood, porque o marketing não domina mais apenas o processo de venda e divulgação de uma obra, mas também sua criação. Essa é a diferença crucial entre os sucessos do terror americano de hoje e de ontem: Hollywood castra mais do que nunca. Terrifier 2 quebra a hegemonia hollywoodiana.


Dos principais cineastas hoje, a maioria trata a forma cinematográfica como mera embalagem para um conteúdo, e a maioria dos críticos se preocupa mais em “desembalar” os filmes do que em entender suas respectivas propostas. Os principais cursos, livros e palestras sobre roteiro cinematográfico não parecem tratar de arte, mas de publicidade — de como gerar engajamento, de como transmitir ideias com eficiência.


É sintomático que o grande herdeiro dos exploitation no mainstream atual seja Ti West, cujos dois últimos filmes apresentam uma estrutura narrativa precisamente lapidada a fim de apresentar suas noções rasteiras e pretensamente subversivas sobre os costumes morais da sociedade americana. Dialoga bem com a tradição do cinema B, mas possui uma organização superficial e um polimento inéditos, que têm mais a ver com a tendência do mercado de engessar alguns modelos “profissionais” de arte do que com o apelo real desses filmes. Não à toa, X: A Marca da Morte e Pearl passam longe de filmes B como Aniversário Macabro e Halloween; porque o mercado mudou de tal forma que essa antiga categorização não faz mais sentido, bem como a produção massiva de filmes esteticamente alinhados com o exploitation.



Entre o final da dos anos 1960 e o início dos 1980, os produtores pensavam nas demandas comerciais de forma muito rudimentar e os filmes de terror mais bem sucedidos eram mais baratos e consideravelmente mal desenvolvidos. Sexta-Feira 13, por exemplo, teve anúncios pagos em jornais antes mesmo de possuir um roteiro. Sean Cunningham, seu criador, era mais um marketeiro do que um cineasta e, mesmo assim, nunca pensou no filme em si como uma peça de marketing; por isso, o roteiro é tão descuidado e sua decupagem é tão deselegante — com exceção de uma ou duas boas cenas. Fica óbvio, então, que esse foi um filme que lotou as salas de cinema por razões que independem do bom acabamento e da embalagem rentável da estética do marketing. O público jovem e adolescente enriqueceu Cunningham porque o filme oferecia duas coisas muito interessantes: sexo e violência. Os exploitation eram feios e se vendiam como feios, não havia a perfumaria que os estúdios insistem hoje — principalmente uma produtora "alternativa" como a A24, que tem mais vaidade do que todo o glamour da Hollywood clássica.


No mercado atual, todavia, existem nichos e nichos, cujas demandas são atendidas em grande escala pela mesma Hollywood de sempre, que agora também oferece produtos especiais para quem a odeia. Assim, a demanda contínua por filmes de terror inconsequentes e subversivos é atendida exclusivamente por uma indústria que nunca entendeu bem a graça desses filmes. A própria franquia Sexta-Feira 13 demonstra isso em seus bastidores, já que apenas o primeiro filme foi de produção independente. O envolvimento da Paramount gerou continuações muito melhores do que o original (como Sexta-Feira 13 - Parte VI: Jason Vive) e amostras da covardia e da esterilidade para as quais a indústria americana tende a empurrar tudo (como Sexta-Feira 13 - Parte VIII: Jason Ataca em Nova York, o último produzido pela companhia).


Retrospectivamente, sabemos que a era dos exploitation foi singular porque começou no período em que o mercado cinematográfico se abria à contracultura e aos filmes independentes — que frequentemente chegavam a competir, com vigor, pela bilheteria dos filmes de grandes estúdios.



Os anos 1970 coincidem também com a chamada “Era de Ouro da pornografia”, em que filmes de sexo eram exibidos em cinemas de verdade e recebiam críticas (às vezes, positivas) em jornais sérios. O exploitation sempre flertou um pouco com a pornografia, e não apenas pelo excesso de nudez, mas porque muitos profissionais eram compartilhados: uma das vítimas de The Toolbox Murders é interpretada pela atriz pornô Kelly Nichols e o primeiro filme de Danny Steinmann (diretor de Sexta-Feira 13 - Parte V: Um Novo Começo) era pornográfico. Até o comportado Wes Craven começou realizando filmes adultos. Esse tipo de aproximação do cinema B espantaria qualquer profissional sério de Hollywood; afinal, os exploitation costumam apresentar baixa qualidade técnica, incompetência profissional, limitações financeiras e pouquíssimas pretensões artísticas. Nada disso, os impediu de marcarem história como uma parte importante do cinema popular americano, confirmando o que Pauline Kael escreveu em 1969:


O profissionalismo que Hollywood sempre vendeu não apenas tem pouco a ver com arte — o uso expressivo de técnicas — como provavelmente tem pouco a ver com o real apelo das bilheterias. [...] Dificilmente vale a pena falar de técnica, a não ser que seja usada para algo que valha a pena: por isso, a teorização sobre a nova arte dos comerciais televisivos é tão absurda. Os efeitos são impessoais — habilidosos, às vezes inteligentes, mas vazios de arte.


Contudo, por que haveria algo de especial na péssima técnica de um Acampamento Sinistro, já que arte é, pela definição de Kael, "o uso expressivo de técnicas"? Porque foi essa cultura diversa e libertária dos anos 1960 e 1970 (asfixiada lentamente a partir dos anos 1980 e que, hoje, parece morta) que melhor representou, no cinema de gênero, a condição humana em crise na pós-modernidade. Até o exploitation mais vagabundo e genérico transmite a inquietação típica do contexto e da mentalidade responsável por aquelas decupagens econômicas e ligeiramente descuidadas. Seus filmes são lixo: torpes, feios, sujos e deselegantes. Mesmo assim, a profundidade da condição humana se revela em pequenos vislumbres — frequentemente falseados nos filmes atuais pela perfumaria do estilo marketeiro.



O que me agrada, então, no exploitation “raiz” não é a popularização do vulgar ou o lixo em si, mas a representação cinematográfica honesta das baixarias que interessam ao espectador. Existe algo fundamental na arte que negligenciamos quando esquecemos seus apelos primordiais. Da infância à idade adulta, filmes se comunicam profundamente conosco por causa de elementos muito básicos e sedutores espalhados aqui e ali, não tanto pela harmonia de suas características superficiais ou pela técnica cuidadosamente lapidada. São demandas do coração, antes de serem demandas comerciais, que buscamos atender quando vemos um filme. Por isso, os filmes que formam nosso imaginário pessoal nem sempre são os melhores, mas são os que entregam o que nossos corações pedem; seja em um bom diálogo, uma boa piada, uma cena especialmente assustadora ou um momento de triunfo inspirador. Arte é o uso expressivo de técnicas e a incompetência técnica, às vezes, é mais artística do que a fria e desalmada técnica inexpressiva.


A indústria pode tentar conter nossas necessidades do coração em suas obras comportadas e higienizadas, mas certas coisas só são entendidas por um filme sem pé nem cabeça, com uma história fajuta e desumana, de um palhaço demoníaco que dilacera pessoas por diversão. E não é a mera história; acima de tudo, é a forma profissionalmente desonrosa com que Damien Leone lida com o cinema.


Os três filmes do palhaço Art nem são tão bons (certamente são piores do que X: A Marca da Morte), mas vamos a eles com sede de tudo o que Hollywood nega ao seu público, inclusive a inaptidão dramática. Claro que não a considero boa em si, porque limita as possibilidades de expressão da beleza escassa que torna os filmes atraentes, mas é necessário um espaço para os filmes que são tão honestos que se dão ao direito de serem ruins. O filme ruim dos estúdios é uma propaganda mal pensada (como tantos da Marvel); o filme ruim de Damien Leone é uma arte ingênua, apesar de impura, que se despiu diante do público ao ponto de não poder esconder suas fragilidades. Isso é arte — bruta e limitada, mas parte da mesma essência que nos leva ao maravilhamento com Murnau e Dostoiévski.


 

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