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The Batman (2022) | A abertura e a ideia

Temático, interessante, intrigante e inventivo literalmente do começo ao fim.



Assim como é de se esperar de todo blockbuster que investe toneladas de dinheiro em marketing, o Batman de Matt Reeves foi um completo sucesso de bilheteria. Felizmente, o que tem se tornado cada vez mais raro no cinema atual, o filme é triunfante e parece ter agradado tanto gregos quanto troianos, abraçando o “nerdola” e o “crítico” na entrega de um universo não só conciso quanto ousado e bem desenvolvido narrativa e cinematograficamente. Este texto não é propriamente uma crítica, caso queira ler uma recomendo fortemente o trabalho de meus dois outros amigos que escrevem para esse compilado, mas sim uma análise de um breve momento que, de uma forma majestosa, dita não só o personagem de Robert Pattinson e parte de seu arco dentro da obra, mas também exala uma ideia geral e um apreço narrativo de se criar algo a mais que a simples ação de adultos fantasiados.


Antes de me debruçar sobre os pormenores desse recorte gostaria de refletir sobre algo: como cenas de abertura, por muitas vezes, não só ditam o tom do filme e o introduzem, mas também trazem a tona uma noção muito profunda, ainda que cronologicamente reduzida, de seus dramas e conceitos. Para exemplificar, tomemos a cena de abertura de O Silêncio do Inocentes (Jonathan Demme, 1991): Clarice Starling (Jodie Foster) se exercita dentro de um bosque/área florestal antes de atender a um chamado de seu superior. Nessa sequência, tanto a câmera na mão transmuta a percepção de alguém correndo junto dela quanto o uso de teleobjetivas em uma panorâmica rápida dão a sensação de que ela está não só sendo filmada fora da diegese do filme, mas vigiada dentro dela.


Mais tarde, vemos ela adentrar as instalações do FBI em suas roupas de treino, atendendo a pressa do chamado. Ela passeia pelos corredores até chegar no elevador, em que se vê cercada por homens que a olham com um olhar misto de menosprezo e desejo. Engraçado reparar em aspectos de linguagem que normalmente não são pontuados, nesse caso o casting, já que Jodie Foster tem uma estatura mediana e escalaram figurantes extremamente altos para dar essa presença ostensiva no ambiente e fazer com que ela pareça menor. Isso sem falar nas roupas vermelhas que atiçam ainda mais o senso de alarde.


Em menos de 10 minutos de rodagem, em uma cena em que inclusive são exibidos créditos, já fica claro tanto uma porção do tema, com a predação do feminino, quanto um resumo em partes da história, já que literalmente envolve um psicopata que captura e assassina mulheres.



Desde que assisti Silêncio dos Inocentes pela primeira vez, tardiamente em 2021, essa habilidade de construir um universo tão rico, especialmente tão temático, com tão pouco tempo e articulação ficou na minha cabeça como um exemplo de linguagem até então único. Felizmente, abandono minha impessoalidade e tiro do bolso minha carteirinha de fã do homem-morcego, posso dizer que não só um filme de herói, mas um filme do Batman tem essa mesma excelência em seus minutos iniciais.


Logo após uma cena rápida, o ato inicial do Charada que desencadeia toda a trama do filme, o herói toma a obra com uma narração. Parece ser uma espécie de diário, o que já lembra o trabalho de Frank Miller com a origem do herói em Ano Um, uma HQ bem referenciada aqui. Ele conta brevemente como tem sido seu trabalho e um pouco de seus objetivos enquanto a noite de Halloween chega e, como sempre, uma onda de crimes se apossa de Gotham. Aos poucos alguns atos criminosos vão se desenrolando e a narração se torna muito menos factual e muito mais filosófica.


Nesse momento a câmera é por horas contemplativa, quando expande para mostrar o todo caótico que envolve a cidade, por horas tão vigilante quanto em O Silêncio dos Inocentes, observando os criminosos de um ponto de vista comum. O bat-sinal chega aos céus e, um item tão famoso dentro dessa mitologia ganha um significado levemente diferente: não é só mais um chamado ou pedido de socorro, se tornou um aviso, uma anunciação de que, como ele mesmo diz, há motivo para sentir medo.



Vemos um vândalo pichando a fachada de um banco, um assaltante roubando uma loja de conveniência e um grupo de arruaceiros escolhendo sua próxima vítima no metrô. Aos poucos, após os meliantes perceberem o enorme morcego cintilando pelas nuvens de Gotham. A câmera encontra um caminho para um canto escuro, de onde, mais uma vez segundo o próprio, esperam e temem encontrar Batman se escondendo nas sombras, mas pelo simples fato de sentirem tal medo, é como se já estivesse.


Deixando um pouco de lado todo o burburinho que sempre se forma ao redor de um personagem como esse, é incrível como Reeves alcançou tal resultado. O diretor não se preocupou em criar a melhor versão do herói, ele se preocupou em criar a sua versão e isso fica bem claro nesse pequeno exemplo de autoralidade. Sem se quer aparecer, já fica destilado aqui qual é sua dinâmica: atuar como uma força da natureza urbana que pretende vingar, em cada bandido, a morte de seus pais para construir um legado real. Ele é um vingador tenebroso e frio, digno de se sentir medo e que desperta o pior sentimento possível nas pessoas. Não à toa, tem um resultado diferente do que esperava e, só quando percebe seu papel e completa um arco construído em moldes bem básicos, deixa de ser um animal noturno para se tornar um ícone.


Retomando, é na cena de abertura que o filme abre não só seu enredo, mas seu tema e firma sua personagem como ninguém, de um modo completamente imperativo, só para que, ante a uma força ainda maior que choca sua então essência com novas descobertas e uma reinterpretação de si mesmo, desconstrua ele. Ou seja, se tal virada é poderosa, só é por ter uma base rígida para ser reinventada. Cinematograficamente, a sombra dá lugar à luz, sua força não vem da capacidade de escurecer o presente, mas sim de clarear o futuro de uma cidade que ainda tem muito que reconstruir.


É uma história de origem dentro da história de origem, uma reinvenção do cinema de herói que, de quebra, ainda é um baita neo-noir. Um Batman que deixa de olhar o que ele tem que defender e passa a prestar atenção em quem ele tem que proteger. O trabalho de Matt Reeves foi o único a esbarrar no resultado que Burton teve em seu segundo filme. Quem diria que deixar um diretor de cinema livre criativamente e sem amarras com a realidade poderia render um bom caldo? Bom, a muito tempo não saia de um blockbuster pensando isso, mas mal posso esperar para o que vem adiante.


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.




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