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Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022)

A fadiga mental gerada pelo excesso de estímulos visuais se une a um caos desnecessário de um longa no qual a filosofia autoexplicativa de mesa de bar tenta ser vendida como auge da complexidade



Nunca fui boa em fazer escolhas. Assim como Evelyn, protagonista de Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, sempre penso no que poderia ter sido caso aos 11 anos eu não tivesse mudado de escola ou se, caso aos 17, eu não tivesse escolhido o curso que escolhi. Teria eu as mesmas amizades? As mesmas relações amorosas? Sequer estaria aqui? O "e se" sempre esteve comigo, permeando minhas escolhas a minha vida inteira. Perceber dilemas similares em filmes, para mim, sempre foi uma forma de me entender também. Talvez por isso Senhor Ninguém (2009) tenha sido meu filme favorito por tanto tempo, pois assim como Nemo Nobody, perceber e conviver com as consequências das minhas escolhas é o medo que por vezes me paralisa de viver. Para mim, a teia infinita de caminhos que surge a cada pequena escolha que tomamos será sempre um misto de fascínio e constante angústia - e, talvez por isso, um dos meus temas favoritos.


Assim, já dá pra perceber que Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tinha boa parte dos pré-requisitos necessários para me emocionar, afinal, discutir sobre a nossa irrelevância no vasto e infinito universo, sobre como "nada importa" a não ser o aqui e agora e sobre como a felicidade está em minúsculos espaços de tempo, é tudo que eu acredito veementemente que a vida seja sobre - mas não foi o que aconteceu. Ainda que a reflexão sobre a existência e a busca por sentido tenha me atraído e que o filme, ao final, se apresente como um alívio para os angustiados com a própria existência como eu, antes de me consolar e me abraçar, ele me afastou para longe, com seu excesso de repetições desnecessárias e, principalmente, sua vontade incontrolável (e muito irritante) de explicar-se. A todo instante.



Como quem tem total noção do caos desnecessário que provoca, o indicado ao Oscar de Melhor Filme definitivamente não confia na potência das próprias imagens para transmitir sua mensagem principal. Então, precisa mastigar repetidas vezes ao espectador seu discurso niilista primário e superficial, através do recurso mais empobrecido possível no Cinema, que é o texto, ao menos umas trinta vezes durante a trama. Com cerca de quarenta minutos de projeção, o primeiro capítulo já entrega tudo que o longa vai se tornar nos minutos finais. Foi possível entender mais cedo do que eu queria que, ao final, Evelyn vai perceber a dádiva de ser mediana e usar isso a seu favor dentro da sua vida pacata, em seguida resgatar os laços com o marido e a filha e, enfim, se perceber como alguém que deveria apenas aproveitar o agora como merece (muito embora ainda ache a filha gorda e ainda a perceba como alguém que não quer ter por perto a maior parte do tempo), porque... Porquê mesmo? Ah, porque "nada importa". Ok.


Quando Evelyn dá o seu primeiro salto no multiverso e vê como seria a sua vida como atriz, o recurso do flashback seria suficiente para entender a lógica das habilidades que a personagem irá demonstrar dali pra frente. Mesmo assim, mais uma vez sem confiar na potência das suas imagens para transmitir sua mensagem, algo básico do Cinema (ao menos deveria ser), o filme recorre ao texto e ao Waymond, personagem que é marido da protagonista, para então explica-lá o bê-a-bá desse multiverso, de novo. E isso vai acontecendo várias e várias vezes, como quando Evelyn espera toda uma cena se desenrolar da forma mais bizarra que poderia, para finalmente fazer a pergunta que todo mundo já sabia a resposta desde a cena anterior (onde a sombra de Joy aparece com um capuz) a fim de saber quem era Jobu Tupaki. Não tinha nenhuma surpresa, pois o filme entrega na própria imagem toda a resposta do mundo, só para depois mastigar tudo isso no texto. É o que vai acontecendo, repetidas vezes, até se tornar incrivelmente cansativo.



Das duas uma, ou realmente eu estava correta em perceber que o caos causado ali é desnecessário e distrativo ou, é ainda pior que isso, e a explicação é que o filme subestima quem o assiste, como se a sua mensagem filosófica fosse complexa a ponto de necessitar ser reforçada, já que martelar esse conceito seria a única forma de ser entendida pelo espectador comum. Ainda que, na realidade, a moral final seja não apenas óbvia e superficial como também pouco original já que várias outras vezes no Cinema, seja no filme que citei aqui no início, Senhor Ninguém (2009), seja em I Origins (2014), seja em Red (2022), ou mesmo nas próprias referências que os irmãos Daniels usaram, como Matrix (1999), as mesmas ideia já aparecem em outra roupagem - e desenvolvidas de forma muito superior, sem tanta ‘firula narrativa’.


O que me parece é que o filme dos Daniels apenas desejou ser profundo, mas não conseguiu abraçar essa complexidade e unir ela ao absurdo que o tornaria em tese muito original, por isso usou de um meta absurdo para se vender como diferente, catártico. Tomou apenas pela metade uma falsa profundidade, só para ter em que se apoiar. No final, nenhum dos dois aspectos funcionam muito bem e o filme morre na praia como uma confusão imagética, cheio de detalhes e simbolismos em seus planos que não comunicam nada de tão inteligente, somente se vendem como tal, na intenção de serem pontos passíveis de discussões em redes sociais e mesas de bar, rendendo um papo raso sobre uma filosofia barata. Seus símbolos podiam ser interessantes, mas logo se tornam irrelevantes e vazios quando o próprio filme explica tanto seus aspectos básicos, que se esforçar para entender o que é o "donut", por exemplo, é desnecessário, já que tudo que você precisa não poderia estar mais sublinhado em tela.



O filme torna dessa autoexplicação o seu vício mais problemático. Digo mais problemático porque é justamente esse vício o responsável pelo que o tem de mais fraco, que é o seu desfecho. Na ânsia de fechar todos os pontos e dar um sentido a todos os personagens possíveis, não se contenta em encerrar o arco da protagonista Evelyn, de Joy e do marido Waymond apenas. O filme vai querer empurrar à força mais história ainda, quando ao final decide erroneamente ao meu ver por misturar todo mundo na mesma salada mista, atribuindo a todos os personagens, incluindo o avô e a personagem de Jamie Lee Curtis, o mesmo nível de importância na trama. Como se seus desfechos justificassem a extensão dessa já tortura em forma de imagem em mais 40 minutos, já no terceiro capítulo.


Acredito que existe sim uma catarse proporcionada por uma sede inenarrável pelo caos, e que esse sentimento catártico teria sido vivido por mim de forma positiva caso tivesse sido confiada a mim, enquanto espectadora, uma interpretação mais livre desse multiverso caótico. Por isso, não me leve a mal quanto ao escracho do filme, eu realmente amo essa excentricidade, esse lado um tanto “nonsense” da sua construção e inclusive penso ser o que mais funciona sobre ele. O Cinema é o único lugar possível onde o absurdo pode ser normal e onde o extraordinário pode ser, sem dúvidas, o mais absurdo. Mas, no deserto tenebroso de originalidade em que vivemos, confundir o original bom com o absurdo mediano pode ser mais comum do que parece. E eu acredito que seja o caso aqui. Os irmãos Daniels sempre trabalharam com filmes onde a ideia do que não faz sentido é bem-vinda, por isso, um filme de multiverso é libertador. Mas, libertador mesmo é deixar ser compreendido. E eu não me senti livre.



É decepcionante não conseguir entender como um longa com tanta coragem em sua forma e tanto estilo próprio, acaba se perdendo tão facilmente em si mesmo. Parece ser uma questão comum dos filmes da A24, isso de “explicar suas metáforas”. Produções que vestem uma roupagem inteligente, se vendem como muito diferentes, mas não raro são apenas mais do mesmo, em uma embalagem mais conceitual. Não é difícil de entender, mas quer que você pense que sim. Por isso vai te levar em uma jornada de duas horas onde imagens são conjugadas com textos mastigados. Isso pode te dar a impressão de que você quebrou um código indecifrável quando, na verdade, estava ali o tempo todo. Você só foi distraído o suficiente com o excesso para não deduzir logo nos primeiros minutos.


Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem todos os problemas de um filme que usa e abusa de uma complexidade rasa, ilusionista, desnecessária e irrelevante. Ele não é fiel ao próprio mantra. Para um filme onde “nada importa”, deixar o espectador ciente de tudo, a todo tempo, parece importar demais. O custo disso é a total desconexão, onde a decepção e a fadiga mental são inevitáveis. Quando se encerra, o filme já parece ser muito inferior a qualquer outro já lançado com a mesma moral. Se torna um belíssimo exemplar daquilo que não deve ser feito em termos de firulas, mesmo sendo corajoso em outras tantas escolhas. Especialmente de visual. Mas se para todo bom filme bastasse coragem e uma pitada de estilo, obras-primas nasceriam em árvores. Ou ao menos, em múltiplas versões em milhares de multiversos.


Nota da crítica:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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