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Spencer (2022)

A deterioração psicológica de uma princesa desalentada (e suas implicações políticas)


Sempre fui da opinião de que o melhor tipo de filme biográfico não é aquele que se limita a uma reprodução dos fatos mais importantes da vida do sujeito biografado, mas sim aquele que captura um certo estado de espírito a partir da história de vida dele. É, isto é, o tipo de filme que se apropria da personalidade em particular da pessoa em questão e a analisa sob diversos frontes, das suas características temperamentais específicas, por exemplo, até a maneira como as suas condições e/ou conjuntura de vida – que é o que a torna uma pessoa famosa em primeiro lugar – lhe exerceram influência formativa, positiva ou não. Em suma: não é sobre a história do indivíduo em si, mas o que se pode articular a partir dela.


Assim, me é interessante que Spencer não seja, simplesmente, uma coleção de fatos e ocorridos mais famosos da controversa e emblemática princesa Diana (coleção esta que já deve ter sido redigida por mais de um veículo de imprensa, diga-se de passagem), e sim, efetivamente, um estudo de personagem sobre a deterioração psicológica que ela sofreu ao longo de sua vida como um membro da família real britânica. Afinal, não é preciso nos debruçarmos sobre toda história da falecida Lady Di para sentirmos aquilo que a afligia, tampouco interessa se os eventos retratados em Spencer possuem algum lastro mais concreto na realidade dos fatos, porque o sentimento de desolação que o filme captura é verdadeiro.


E é por meio da mise-en-scène de Pablo Larraín que essa desolação da personagem toma forma de experiência cinematográfica. Ademais, o fato de Spencer não se tratar muito de um filme de conflitos externos, e sim uma obra que opera em uma chave narrativa de ordem muito mais interna (isto é, não há objetivos materiais claros aos quais a protagonista persegue e, no processo, sofre mudanças em sua personalidade; por outro lado, o que contemplamos no filme são os desassossegos psicológicos, internos, causados em Diana pela existência na realeza britânica), e levando-se em conta que a expressão dos estados emocionais da protagonista se dá por meio da articulação técnica do filme, este é muito cinematograficamente rico.


Ao longo dos três dias do feriado de Natal da família real, portanto, em muitos momentos tudo o que vemos é Diana vagueando pelos vastos cômodos, corredores e jardins do imenso palácio de Buckingham. A decupagem, nesses momentos, isola a protagonista em relação ao cenário, de modo que este se agiganta sobre ela, e a câmera persegue-a de maneira deslizante, como um fantasma, deformando as bordas da imagem nos momentos de maior desespero, fazendo de todo o palácio um organismo atuante na opressão psicológica de Diana. Ou seja, o que percebemos da direção de fotografia de Claire Mathon é um estado emocional da protagonista: a solidão lhe consome a alma quando ela está confinada no palácio.



Não me espantaria de ver O iluminado na lista de referências para a mise-en-scène de Larraín, aqui: se, no filme de Stanley Kubrick, essa decupagem faz da câmera como que um olho vivo, a possibilidade de um espectro fantasmagórico que persegue os personagens e transforma todo o Hotel Overlook num ambiente efetivamente assombrado, em Spencer, o mesmo recurso é utilizado para um efeito similar: a câmera é um fantasma, e o palácio de Buckingham é um castelo mal-assombrado. A diferença, no entanto, é que os fantasmas que assombram Diana são os espíritos de uma tradição arcaica que insiste em se impor sobre os indivíduos do presente.


Além disso, a forma com que os demais personagens se referem a ela amplia o seu sentimento de solidão e, consequentemente, de desespero. Ou Diana é tratada com uma admiração mais pelo pedestal em que ela está, apesar de sua vontade, sendo obrigada a conviver com a solidão praticamente inerente ao status de celebridade, como a Beatriz da canção homônima dos grandes Chico Buarque e Edu Lobo, simplesmente por ser quem ela é; ou é com uma frieza performática que soa ensaiada e, definitivamente, é destituída de qualquer afeto genuíno; ou, enfim, a partir de perspectivas julgadores e opressivas, que esperam delas apenas o comportamento que ela deve empreender por ser uma princesa da família real.


No primeiro caso, os melhores exemplos são o cozinheiro, que, por mais que seja uma espécie de confidente da protagonista, um dos poucos em todo o filme, jamais se refere a ela que não seja por meio de um máximo e descomedido respeito: no início do filme, tão logo ele a chama pelo nome de nascença, imediatamente se corrige para referir-se a ela como “Vossa Alteza”, de modo súbito, para evitar faltar-lhe com o devido respeito. Há, também, a cena em que Diana para numa lanchonete na beira da estrada para pedir informação: a forma como os “plebeus” (em relação à figura real que é Diana, é o que são) lhe esmagam com os olhares fascinados é, para a protagonista, aflitivo de um modo asfixiante.


Em relação a segunda situação, talvez o desamor que o príncipe Charles deposita a ela seja o mais expressivo exemplo. Eis, aí, a figura de um homem que, se algum dia experimentou o desespero de Diana, há muito não o sente mais, há muito já abandonou a sua humanidade interior, as suas peculiaridades pessoais, em prol do exercício do dever, que é toda a sua existência. Em sua performance, o ator Jack Farthling jamais se expressa de modo que não seja frio e calculado, de uma elegância magnânima e cortês, como é esperado de um príncipe, porém ensaiada e sem espaço para os afetos. A cena do diálogo entre ele e Diana na sala de bilhar é particularmente dolorosa: é ali que entendemos que é este – a frieza comportamental e o abandono da humanidade em nome do papel a se executar, isto é – é o destino que aguarda Diana e, pior ainda, os seus filhos, Harry e William.



E, no que se tem a terceira circunstância, a presença do mordomo Alistair Spall, que no filme é contratado especificamente para garantir que Diana se mantenha na linha durante o feriado de Natal da família real, é bastante significativa. O personagem, no exercício de sua função, persegue Diana como um abutre (o semblante idiossincrático do ator Timothy Spall complementa esse efeito de uma presença sinistra), e as suas aparições em cena súbitas e imprevisíveis fazem com que se instaure a constante sensação de que Diana esteja sendo constantemente vigiada, mesmo em momentos de privacidade ou em que a presença do mordomo seria impraticável. Uma sensação que se transforma numa paranoia silenciosa.


Ou, também, a presença da Rainha Elizabeth II, que, sem dizer uma palavra (segundo a minha memória, a Rainha tem pouco mais do que algumas linhas de fala durante todo o filme), apenas com o olhar, ao mesmo tempo julga e condena a protagonista. Na cena do primeiro jantar, por exemplo, o momento climático é quando se percebe que a Rainha está encarando a protagonista, julgando-a pela sua relutância, ainda que atemorizada, de deglutir a sopa de aspecto nada apetitoso, isto é, de ceder à realização dos costumes da família real. E é esse olhar intimidador, paralisante, que conduz a protagonista ao momento onírico que inicia a significação metafórica do colar de pérolas: começando como um símbolo do desamor de Charles para com Diana, o colar, a partir daí, torna-se a corrente que a mantém sufocada às imposições comportamentais de sua família.


Há, no entanto, alguns momentos que oferecem um respiro das aflições de Diana, como as cenas em que ela passa com os seus filhos, os príncipes Harry e William, ou, especialmente, a cena em que ela e Maggie, a camareira que também é a sua melhor amiga e maior confidente, conversam sobre intimidades na praia, escondidas dos olhares autoritários da realeza e seus empregados. Nessas cenas, o clima é totalmente diferente: sendo elas normalmente iluminadas por velas ou, no caso da cena na praia, toma-se proveito dos tons quentes para se utilizar uma paleta de cores de tons calorosos na composição das imagens, e levando-se em conta a maior intimidade dos planos, sem as distorções nauseantes, são momentos mais afetuosos que permitem que a protagonista haja de modo um tanto mais espontâneo e solar, menos simulado e tristonho.


Mas mesmo essas cenas mais felizes contêm, em si, um pouco de tristeza e desolação, porque, para além de sempre haver a sensação de que Diana está sendo vigiada, em maior ou menor grau, que já mencionei acima, as cenas são como que “arquipélagos de afeto” para a protagonista em relação ao todo do filme. Com efeito, por mais que permitam à personagem um vislumbre de uma felicidade autêntica, sem as amarras compulsórias de conduta dos modos, tais cenas delineiam ainda mais o abismo entre a sua vida performática e desalmada e uma experiência de uma felicidade mais genuína.



Tudo isso exerce o seu efeito psicológico à personagem, que, uma vez que não conseguimos acessar o seu estado mental (como seria possível, por exemplo, na Literatura, ou no Teatro), é expresso visualmente, por meio da performance de Kristen Stewart: é por meio dela que temos o maior acesso ao desalento e ao desespero de sua personagem. Com uma aparência anêmica, Stewart vagueia pelos corredores e jardins do palácio de Buckingham quase sempre cabisbaixa, encurvada e melancólica, quando não está se contorcendo em desespero em direção a algum banheiro, para regurgitar tudo o que comeu no que parece ser um acesso de bulimia. Quando ela fala, a sua voz sai sussurrada, como se uma mão invisível lhe sufocasse a garganta.


E, assim, Diana vai deambulando durante todo o filme, pelos espaços inegavelmente luxuosíssimos do palácio de Buckingham, porém experimentando uma verdadeira miséria emocional, em que as correntes que a aprisionam num passado antiquado pesam cada vez mais. Na trilha sonora de Jonny Greenwood, os arranjos melódicos tristes e lacrimejantes vez ou outra entram em conflitos dissonantes com elementos musicais diferentes; uma colisão tensa, até meio confusa, entre sons mais clássicos (o piano, os violinos) e mais modernos (saxofones, tubas, trompetes e a caixa de uma bateria) que culmina na síntese do anacronismo que assombra e oprime a protagonista.


Na montagem, alcança-se um efeito semelhante: principalmente nos momentos de grandes eventos da família real, a edição de Sebastián Sepúlveda dá elipses súbitas, por vezes relacionando dois planos descontínuos entre si, gerando a aflitiva sensação de uma passagem de tempo truncada, ampliando assim a expressão da confusão da personagem, tendo sido levada a um estado mental depressivo em que a passagem do tempo soa mais ambígua do que o normal, e da própria conjuntura em que se encontra, meio perdida entre o passado e o presente. Eis outra vez, aí, o anacronismo, o principal indutor de desespero a Diana de todo o filme, já que a confina numa vida performática apesar de sua vontade.


“Apesar de sua vontade” porque não é nem que as aspirações, os desejos, os anseios e as aflições de Diana são percebidos e, então, negados. É que eles não são nem ao menos considerados: em outras palavras, não é nem como se o direito a uma vida normal, em que Diana é percebida como um ser humano, igual a qualquer outro e tão digna de afeto e conexões verdadeiras como qualquer outro, lhe tivesse sido negado. É como se ele nem ao menos fosse uma opção. Ora, mas é claro: ela é Diana, a Princesa de Gales, herdeira do trono britânico ao lado de Charles, o Príncipe de Gales, e é esse o papel que se espera que ela cumpra, ponto-final. É nessa vida de princesa (uma vida de luxos e fartura emocional, sim, mas também de desamores), enfim, que ela está destinada a se afogar.



Mesmo que a família real não pareça ter lá uma relevância pública que se afaste, simplesmente, do fato de eles serem parte da família real. Isto é, é de se notar que Spencer nunca apresenta os membros da família ativamente engajados em atividades de cunho mais político, o que, por outro lado, é basicamente a norma de outras peças audiovisuais protagonizadas pela realeza britânica, como o filme A rainha, do britânico Stephen Frears, ou a série The Crown, que é comandada por Peter Morgan. Inclusive, como discutimos acima, parte do que amplia a solidão em Diana é, justamente, o seu status de celebridade; com efeito, assim parece ser a vida dos demais membros da família real, segundo o retrato de Spencer: uma vida de pura fama, em que eles são adorados pelo público simplesmente por serem “a família real”.


Ademais, o ridículo de algumas das tradições mais estapafúrdias não passa ileso nem pelos próprios personagens, como a obrigação absurda de se pesar antes e depois das comemorações de Natal, sendo o aumento de 1,5kg de peso como uma evidência cabal de que as festas foram bem aproveitadas. Além disso, em diversos momentos Diana diz frases como “aqui, nesse palácio, não há futuro, e o passado e o presente são as mesmas coisas”, numa das primeiras cenas de diálogo com os seus filhos Harry e William, ou “espero que o cavalo tenha ficado livre”, numa conversa com o mordomo Alistair que evidentemente insinua o caráter petrificante das tradições inglesas, que, aos ouvidos do espectador mais cético, podem soar um tanto ilustrativas até demais no que concerne as pretensões temáticas do filme.


O que contrabalanceia um possível didatismo em que Spencer poderia cair nestes momentos, no entanto, é o fato de que esses personagens (ou, no caso, a grande maioria deles – pelo menos, aqueles de maior interesse, como os membros da família real) não só de fato existem na realidade, como até os dias de hoje figuram basicamente nas mesmas posições em que o filme os retrata e, logicamente, até hoje desfrutam de toda a riqueza que evidentemente detém a família real. Assim, o que poderia uma forma mais ilustrativa de se transmitir as reflexões que o filme pretende em relação ao arco dramático da protagonista – de que o anacronismo da família real e suas tradições aprisiona e sufoca Diana, isto é –, tendo em vista essa contextualização temática em particular, transforma-se num discurso irônico mais sutil.


Ao assistir Spencer e se deparar com esses momentos que expõem a insensatez dos hábitos reais de maneira mais óbvia, o espectador que, a não ser que viva debaixo de uma rocha, tem conhecimento de que a família real ainda existe, muito provavelmente perceberá que a família real mais parece um estorvo do que um benefício. Afinal, não só todo o filme é sobre como os seus hábitos tradicionais antiquados podem destruir o psicológico de uma pessoa, como eles não parecem de se ocupar de nada mais além do que a simples reprodução desses hábitos tradicionais. Às luzes disso, é razoável que o espectador acabe se questionando: “Qual é, exatamente, a relevância da família real no âmbito político do Reino Unido?”



Além disso, enquanto Diana caminha pelos largos corredores do castelo de Buckingham, percorre os seus vastíssimos jardins, ou quando ela se veste, como uma boneca, com um figurino mais deslumbrante do que o outro (mas sem nunca se sentir “em casa” neles, é claro), para atender jantares que servem o auge da gastronomia em salões sofisticadíssimos com os seus familiares, estes que também vestem-se refinadamente, tanto no que se tem às suas roupas quanto nos seus acessórios, como colares e anéis, o que vai ficando mais e mais evidente são, justamente, todos esses artigos de luxo em si. Isto é, cada vez mais o excesso de riqueza detido pela família real vai chamando a atenção.

E, quando essa riqueza serve somente à reprodução de modos comportamentais antiquados, que, por si só, já soam como uma fecunda perda de tempo, outras questões podem surgir na mente do espectador: “Quanto será que custa tudo isso? Bem, evidentemente que caro para caramba... E de onde será que vem esse dinheiro todo, para sustentar essa família? Bem, se é vero que eles são de ‘interesse público’, então, não é irracional de se pensar que ele venha do bolso do contribuinte britânico. Caramba, todo esse dinheiro sendo torrado nisso! Será que não há formas mais, digamos, socialmente construtivas de se gastar todo esse dinheiro, como em melhorias na educação, ou investimentos em saúde pública? Será, então, que a família real também é um estorvo socioeconômico para o Reino Unido, para além de um atravanco político? Bem, segundo esse filme, parece que sim... Por que é, então, que ela ainda existe?”


Spencer, da sua parte, não deixa ambiguidades quanto a sua posição nesse quesito. Desse modo, cenas em que vemos Diana cuspir os restos de vômito num vaso sanitário, e o plano se fecha de maneiras bastante próximas a esta repugnante ação, como se nos estimulasse a perceber todos os detalhes da imagem, da brancura da porcelana à saliva que escorre da boca da protagonista nauseada, por exemplo, possuem uma certa equivalência com uma outra cena mais abertamente irônica, quando estão todos da família real assistindo ao discurso da Rainha sendo reproduzido na televisão, e justamente quando ela fala em “liberdade”, a Rainha, cansada de assistir a si mesma, se levanta da poltrona, e todos, como cachorrinhos treinados, levantam-se também, em reverência infalível à “Vossa Alteza”. Ou, ainda, quando Diana, no intuito de repelir a camareira que lhe ajudou a vestir um elegantíssimo vestido de gala branco, diz: Now, excuse me, for I wish to masturbate (perdão aos leitores não-bilíngues, mas a força sarcástica desta frase é simplesmente intraduzível).


Lembremos, a título de exemplo, do escândalo que foi quando Psicose, do mestre Alfred Hitchcock, exibiu pela primeira vez um vaso sanitário na tela do cinema: muitos disseram que fora ofensivo. Lembremos, também, dos sons de cães latindo sobrepostos à imagem de duas idosas ricas de Ame-me esta noite, de Rouben Mamoulian, que Mark Cousins cita como sendo um dos primeiros exemplos do som sendo usado de maneira satírica na história do cinema em seu livro (1) e, ademais, não preciso apontar a obviedade de que a tradição cristã é parte integrante da família real britânica, de modo que a satisfação intencional e irônica por meio do pecado contra a castidade é mais do que uma ofensa: é uma profanação.


Ora, mas o que é o próprio título do filme se não uma evidente sinalização de como ele se recusa a dignificar a protagonista com o nome que lhe conecta à realeza britânica? “Spencer”, como nos é evidenciado em algum ponto do filme, não só é o último sobrenome de Diana (seu nome completo é Diana Frances Spencer), como é o nome herdado de seu pai, este que, não por acidente, aparece apenas nas suas lembranças utópicas da infância, em que ela se divertia alheia ao fato de que estaria destinada a ser princesa. E, acima de tudo, é esse o nome que ela diz para o atendente do drive-thru em que ela para com os filhos, após escapar do palácio de Buckingham numa cena cujo senso exuberante de liberdade, ainda que momentâneo, permite à personagem (e ao espectador) um verdadeiro alívio.



Ou seja: não se trata, apenas, de um disfarce para não ser reconhecida pelos transeuntes da cidade, tampouco apenas uma recusa em se identificar como Diana, a Princesa de Gales, dada a natureza sufocante deste título. Se trata, acima de tudo, de uma reinvindicação de tudo aquilo que ela não teve ao longo de sua vida (ou, se teve, pertence a um passado muito distante): o afeto, a liberdade de se expressar espontaneamente e a possibilidade de viver uma vida nos seus termos, e não a partir de regras rígidas de comportamentos impostas por uma tradição que, aí sim, deveria pertencer a um passado distante.


E, tendo em vista essa contextualização temática de Spencer, esse título não só reflete o arco dramático da protagonista ao longo do filme, como, com efeito, é também um manifesto político. É, em outras palavras, a forma como o longa chama a atenção para a presença pública obsoleta da família real no contexto atual, claramente deixando a sua posição no assunto de maneira, como disse, irônica, escandalosa e profana. Nesse sentido, Spencer funciona também como um indutor para a reflexão da relevância de tradições e costumes ultrapassados que, nos dias de hoje, na prática podem estar causando muito mais prejuízos do que benefícios, tanto no âmbito político quanto econômico e social.


E isso, não necessariamente restrito à realidade pública do Reino Unido: de que formas, por exemplo, o Brasil se prende a costumes arcaicos, e como isso afeta o cenário nacional de maneiras negativas? E o que nós, cidadãos, podemos fazer sobre isso, de que maneira podemos reivindicar sistemas públicos mais atualizados e mais alinhados com as demandas do povo? Nesse sentido, não apenas Spencer é o melhor tipo de filme biográfico (não, simplesmente, uma coleção de fatos, e sim a captura de um estado de espírito), como também é o melhor tipo de filme político, porque não apresenta as suas pretensões politicamente engajadas de modos explícitos e panfletários, mas insere-as no contexto temático da obra, de modo que nós, os espectadores, as intuímos por nós mesmos.


Por estes motivos, enfim, Spencer é um ótimo filme: a valer, ele consegue construir um retrato psicológico bastante peculiar sobre uma das mais emblemáticas figuras da história recente. A partir disso, a obra reflete sobre a progressão do seu arco dramático de maneiras muito esteticamente criativas, explorando efeitos dos elementos cinematográficos para transmitir, de modo geral, o desassossego da protagonista, de modo que se torna uma experiência bastante expressiva e, além disso, muito cinematograficamente rica. E, por fim, intui uma importante discussão política de modo implícito, quase subliminar, e, dessa maneira, não só é um filme interessante pelas suas qualidades técnicas em relação às suas intenções artísticas, como posiciona-se no presente e, com efeito, nos põe para refletir sobre questões pertinentes que dizem respeito ao nosso mundo de hoje. Um grande filme em todas as frontes.

Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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