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Sem Essa, Aranha (1970) | Brasileirismos de Sganzerla

Como o cinema moderno de Rogério Sganzerla integra a câmera à realidade filmada.



Diante dos cem anos da semana de fevereiro de 1922, abracei a oportunidade de assistir a um filme de Rogério Sganzerla na mostra “Ecos de 1922”, organizada pela Lúdica e exibida no CCBB de São Paulo. Espaço modesto, aconchegante; tela decente o suficiente para deixar pouco mais de meia dúzia de pessoas hipnotizadas pela câmera titubeante de Sganzerla filmando sua musa, Helena Ignez. Aqui vai uma ou duas coisas sobre minha experiência inédita com Sem Essa, Aranha.



Sem Essa, Aranha, lançado em 1970 pela produtora de Sganzerla com Bressane, a Belair — que durou quatro meses antes de ser perseguida pelos agentes a serviço da ditadura militar brasileira vigente — parece completar o ciclo “marginal” de Sganzerla, que começa logo em O Bandido da Luz Vermelha, de 1968. O que Sganzerla realiza é uma reflexão transgressora sobre as contradições brasileiras inerente ao nosso nascimento e formação, investigando as inconformidades sobre o “ser brasileiro” e todas as contradições terceiro-mundistas do subdesenvolvimento, ideias já apresentadas em seus três longas anteriores, mas que agora são levadas às últimas consequências da câmera, do dispositivo e do que filma, subvertendo as estruturas do cinema através do que surge diante da câmera.


José Loredo é Aranha, a caricatura mais estupidamente genial da burguesia brasileira/carioca, e também é Zé Bonitinho, o que contribuiu para essa abordagem mais satírica das chanchadas brasileiras. Ele é casado com três mulheres: Helena Ignez, Maria Gladys e Aparecida, que frequentemente vão se alternando no papel dentro de cada bloco narrativo, que muitas vezes não parece ter uma relação direta um com o outro.


Farei o filme com som direto, utilizando os melhores atores que puder contratar. Terá oito planos, de dez minutos cada um; estes planos, absolutamente independentes uns dos outros, levarão às últimas consequências certas ideias, através da agitação da câmera, do som, do diálogo. Em cada plano-sequência de dez minutos, focalizarei um assunto mais ou menos fundamental do cinema brasileiro e procurarei desenvolvê-lo até chegar ao fim, e tentando fazer com que cada plano seja o último plano sobre a aventura, o último plano sobre o sexo, o último plano sobre a picaretagem.

- Rogério Sganzerla


Essa é a base de todo o filme, uma premissa bem simples que vai se tornando cada mais disparate conforme a alucinação se torna mais escandalosa, verborrágica, absurda; uma ópera gritante e alucinatória que começa a partir de um lugar bastante simples: a imersão da câmera (que balança, esbarra no rosto do ator, circula pelo mesmo ambiente, entra e sai de uma casa, se movimenta junto com a dança) na realidade direta que ela concebe. Nesse sentido, enquanto ela vai filmando o que existe, criando o palco direto no qual os corpos gesticulam, dançam, gritam e repetem frases diante dessa realidade anárquica bastante palpável, essa mesma realidade engole a câmera, transforma-a num objeto que faz parte do mundo assim como a aranha pendurada. As imagens e o dispositivo se assimilam: são uma coisa só, existem a partir da outra; respiram juntas.


Se o cinema moderno, como se sabe, explicita a moldura, o que Sganzerla busca é subverter e conceber a imagem transgressora, isso porque sua pulsão em filmar é, sobretudo, não-obscena: como Jean Rouch, Sganzerla filma e continua filmando tudo e o que surge através do fluxo de consciência muito bem gesticulada. A câmera é quem é dilata o movimento dos corpos e o movimento dos gestos, quem constrói e desconstrói os espaços à medida que entra e sai de algum cenário, saindo pela porta de vidro para entrar no carro e acompanhar suas personagens, filmar ao redor e capta a conversa, ou quando segue a personagem de Maria Gladys berrando, protestando, entrando e saindo dos barracos. Eles são guiados e guiam o que se filma, são parte da progressiva irracionalidade que começa buscando cada vez mais a resolução absurda do plano em cada imagem, em cada manifestação corporal ou verborrágica, expondo em imagem e som direto o Brasil que não querem que exista (o anti-Brasil), o Brasil que precisou crescer e aprender a viver diante de todas as contradições que fizeram do povo brasileiro ser escanteado do mundo, os colonizados jogados ao subdesenvolvimento e condenado a perambular por essas terras.



Continuo realizando um cinema subdesenvolvido por condição e vocação, bárbaro e nosso, anticulturalista, buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde o tempo da chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior cinema do mundo!

- Rogério Sganzerla


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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