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Os Catadores e Eu (2000)

Agnès Varda torna manifesta a beleza antes latente na “feiúra” resultante da anarquia do modo de produção capitalista



“Beleza” e "Feiúra" são duas categorias dentro da teoria da arte e da estética. Contudo, ao invés de dizerem respeito a duas modalidades de representação antônimas, são, como afirma o filósofo Edgar Morin, um “complexo que inclui o seu contrário” (MORIN, 2016) - há beleza na Feiúra e feiúra na Beleza. É o que não se parece possível de perceber na arte da antiguidade clássica de maneira tão evidente, mas que ao longo da evolução da história das artes (na Europa Ocidental) foi se manifestando de forma cada vez mais transparente: as fronteiras entre o Belo e o Feio desmoronam com o avanço da modernidade. É assim que, na entrada dos anos 2000, Agnès Varda realiza uma investigação de caráter estético, ético e político, ao escavar a presença do Belo naquilo que foi descartado, marginalizado, no que está ao chão e no meio da sujeira das ruas.


Uma das grandes qualidades de Os Catadores e Eu enquanto documentário de caráter performático (NICHOLS, 2001) - aquele no qual o realizador aparece como figura central da representação, em que ficam patentes suas reflexões, seu olhar e sua encenação narrativa - é que a presença manifesta de Varda está ali para enriquecer a experiência com a realidade que ela representa enquanto mulher, artista e pensadora. Antes de tudo, o interesse do olhar da diretora está nas vivências representadas, de modo que ela jamais se contenta com a simples observação e conhecimento superficial dos fenômenos. Ela mergulha em investigar o cotidiano profundo das pessoas que representa, como no caso do homem que, ao final do filme, ela primeiro observa catando restos da feira de alimentos para, um tempo depois, já estar mergulhada em sua realidade, dentro da pensão onde mora este homem e filmando uma de suas aulas, que ele fornece de maneira voluntária aos seus vizinhos.



Este homem que, inclusive, já nos minutos finais de Os Catadores e Eu, sintetiza um dos motes da obra: apresentar, primeiro, a “feiúra” resultante do modo de produção capitalista, que, em sua anarquia de produção resulta no desperdício irracional de alimentos e outros produtos diariamente, visto que o lucro é superior às necessidades humanas reais, criando uma base de produção caótica onde a demanda material da população não é atendida, enquanto toneladas de artigos de consumo (incluindo alimentos) são jogados ao lixo. Ao filmar este homem catando restos de comida enquanto demonstra seu profundo conhecimento de biologia, enquanto conta possuir um mestrado e viver de vender jornais, sem dinheiro suficiente para se alimentar apropriadamente, para, por fim, filmar, em uma das aulas dele, o ensino da palavra “sucesso”. “O que é o sucesso?” - rapidamente surge na mente do espectador. “O que é o sucesso neste modo de produção, que vai do lucro ao desperdício, do mestrado ao trabalho precarizado?”. Varda apresenta todos estes questionamentos e o primeiro mote da obra apelando para a manifestação da realidade material e sua seleção por um recorte narrativo preciso.


Em seguida, Varda concretiza suas reflexões estéticas a partir dos objetos descartados por este modo de produção, erguendo imagens que desvelam a Beleza latente nestes. Este é um processo que é realizado não apenas com as coisas de fato, mas também com os seres representados no filme. Os catadores, no campo e na cidade, são isso: pessoas marginalizadas pela estrutura, rejeitos reciclando os descartes. Varda aponta e aproxima sua câmera destes, de suas experiências e conhecimentos, e com isso vai revelando a Beleza dos feios. Faz isso até consigo mesma: quando vemos Agnès refletir sobre o envelhecimento de seu corpo e de sua pele, quando as marcas da idade tomam a tela a partir de suas mãos (elemento central no filme - a mão cata, cata alimentos, objetos, imagens, fatos), o que estamos vendo é a diretora pensando sobre seu corpo que, agora, é rejeitado e socialmente descartado. Um corpo “velho”, que não serve mais para a tela, para o centro da representação social que categoriza as rugas e as marcas como feiúra. Uma pele distante daquela que tinha quando, ainda nos anos 50, Varda iniciou sua carreira como cineasta. Ela cata as imagens dos rejeitos sociais, e encena-os sob a perspectiva do Belo. Algo que é também sintetizado num dos planos mais representativos do filme, aquele em que um relógio quebrado e abandonado é enquadrado como uma pintura clássica, e nas “batatas-coração”, manifestação natural do complexo único que engloba Beleza e Feiúra.



Este é meu projeto - filmar com uma mão minha outra mão. Entrar em seu horror. Eu acho extraordinário.

(Agnès Varda, em narração do próprio filme).


O filme todo é sobre este caminho investigativo, tal como as estradas que vemos Varda perambular com sua equipe por diversas regiões onde vivem os catadores do campo e da cidade. Importa mais a investigação e o que resulta esteticamente desta do que uma conclusão estrita das reflexões apresentadas no filme. Tudo isso sob um estilo específico da representação de Agnès Varda: o acaso documental dos fenômenos filmados diretamente da realidade em conflito com a encenação que evidencia um recorte narrativo. Acaso versus controle. Cenas que são evidentemente criadas, encenadas, para produzir um efeito estético, em oposição aos acontecimentos factuais espontâneos que a câmera de Varda capta sob um enquadramento e disposição de objetos na imagem (a partir de sua presença espontânea no mundo) que, igualmente, busca a emoção estética no oposto daquilo que é previamente encenado. Acaba sendo mais uma dialética complexa tal como a unidade Beleza-Feiúra que guia a mise-en-scène do filme.


Um excelente exemplo desta dialética, a partir da encenação intensa são os dois advogados, um no campo e outro na cidade, que trazem a perspectiva jurídica dos ações dos catadores - o que é legal, o que não é. Porém, Varda claramente posiciona estes dois advogados de maneira encenada e cômica: vestidos em togas, no meio da plantação no campo (onde os rejeitos caem ao chão) e no meio da cidade (onde os rejeitos tomam as ruas). É uma espécie de ordem estranha no meio da anarquia que precede o desperdício irracional retratado no filme. Do enquadramento frontal destas figuras de ordenamento em meio às paisagens símbolo do caos capitalista, surge uma relação cômica, de certa maneira satírica, com o plano cinematográfico.



Por fim, Varda termina o filme recorrendo à pintura Gleaners at Chambaudoin (1858), de Pierre Edmond Hédouin, que representa catadoras pegando o restante da colheita e fugindo de uma tempestade que começa a se formar, para compor a imagem-síntese do filme: uma pintura realizada sob uma perspectiva clássica de Beleza, representando os "gleaners" do passado que Varda então representa no presente, sob o mesmo objetivo, ainda que transfigurado, de dar Beleza ao cotidiano dos catadores e os restos que catam. Porém, não se contentando em manter a pintura em seu lugar seguro, Varda posiciona-a em exposição a fortes ventos, no exterior do acervo do museu, entre ventos que balançam a superfície da pintura e adicionam movimento à antes tempestade estática. Varda une o movimento da natureza que somente o cinema é capaz de captar em seu instante imediato à Beleza gráfica da pintura, concluindo nesta imagem sua investigação estética.


Nota do crítico:


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