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Breves notas sobre O Espelho (1975)

Fluxo, memória e projeções: imagem e imanência sob o gênio de Andrei Tarkovski.



Um dos planos mais famosos de O Espelho ocorre em uma de suas primeiras sequências: a Mãe, vivida por Margarita Borisovna Terekhova, espera, sentada na cerca de sua chácara, pelo retorno de seu marido. Toda a construção desse plano orienta-se como uma abstração realista, um sonho que é ao mesmo tempo memória, projeção e fato cinematográfico. Filmada de costas, a Mãe observa uma planície verde, sob um céu rosado, uma iluminação aérea e tons pastéis. A câmera movimenta-se em um dolly-in de maneira fantasmagórica, tornando toda a construção da imagem espectral. Esse plano sintetiza toda a mise-en-scène de Andrei Tarkovski neste filme.


O Espelho é uma obra marcada por imagens cristais, como propostas por Deleuze, nas quais "vários níveis temporais (passado e presente, tempo real e virtual, recordação e anseio) se sobrepõe e se cruzam como os planos diferentes de um cristal"¹. É um filme-espelho no sentido de que suas imagens são reflexos de um fluxo de consciência mental de memórias e projeções. A narração corrobora nesse sentido de que a obra é uma espécie de “fluxo de consciência”, porém sua maior poesia está não no que conta o narrador mas nas imagens, que se constituem como essa hipnose incessante de memórias, sonhos, idealizações e desejos do gênio artístico de Andrei Tarkovski.



Assim, as "imagens-cristal" do filme surgem de acordo com sua “cristalidade”. Isto é, em algum grau, todas elas carregam vários níveis temporais, dado a característica de fluxo imagético de memórias que o filme possui. Porém, aquelas que compõem a sequência citada no primeiro parágrafo são menos “cristalizadas” do que as que fazem parte da sequência final, em que passado, presente e futuro se confundem em uma fluidez contínua, por exemplo. Tais imagens surgem como imanência, sempre em um movimento constante entre si mesmas, de modo que o filme parece jamais fixar-se ainda que tudo o que o constrói sejam registros imutáveis. Poderia dizer que é quase uma transposição de parte da filosofia bergsoniana para a tela, mas é não mais do que a intuição artística agindo no cinema, ou seja, a própria vida a que Bergson ousou defender filosoficamente.


Tarkovski cria a cada segundo que se passa na tela - tudo flui e nada permanece, Panta Rei, enquanto entende a memória como constituinte do ser. Neste sentido, O Espelho é a materialização de seu sujeito em imagens em movimento - o resultado potente de um gênio artístico, de modo que se torna um dos filmes com maior poder de criar Outro Mundo, e transportar-nos para ele, ressoando a frase de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia: "a arte não é uma imitação da realidade, mas seu suplemento metafísico, posta a seu lado para vencê-la!"


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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