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Ela (2013)

As descobertas, as delícias, as dores e os aprendizados da verdadeira relação de amor



Um dos aspectos da narrativa de Ela que mais me intriga é como o filme, além de tudo, propõe toda uma reflexão sobre a natureza ficção-científica: se esta é um gênero narrativo que se basta em si mesmo, ou se é mais uma contextualização e um conjuntos elementos narrativos que, por outro lado, servem a expressão dramática de algum outro gênero mais específico – funcionando plenamente apenas como ferramenta expressiva acoplada a outros propósitos ficcionais, portanto.


Qualquer que seja, em Ela, é definitivamente o segundo caso que se manifesta: quando Samantha anuncia para o protagonista Theodore de que o está deixando porque, como todas as outras inteligências artificiais de funcionamento intuitivo, ela transcende o controle dos humanos e existe como uma entidade própria e superior à raça humana como um todo – evento narrativo este que, em qualquer outra ficção-científica, resultaria em consequências absolutamente catastróficas; eis, aí, uma possível rendição do mito de Ícaro que discutiria, em forma dramática, os temores do homem sobre o avanço da tecnologia –, no filme, o evento só possui significação dramática na medida em que resulta no trágico fim do relacionamento central da trama.


Não obstante, isso diz muito sobre o próprio Ela: quando essa revelação acontece, nós, os espectadores, da mesma forma que Theodore, não entendemos por que Samantha precisa ir embora, porque ela tem que nos deixar e, ainda, qual é a verdadeira substância do seu funcionamento. No entanto, isso não importa para a conclusão do enredo do filme, porque, quando ela enfim sai de cena, a sensação que fica é a mesma tristeza profunda que acomete Theodore, o nosso protagonista: ela nos deixou, e nunca mais vai voltar.



Aí está o grande ponto, o grande propósito de Ela: é este um filme sobre as sensações que há na verdadeira paixão, no verdadeiro amor – sobre aprender a identificá-las, processá-las e a lidar com elas, isto é.


Dessa maneira, toda a realização do filme busca nos pôr à par do nosso protagonista, de modo a sermos posicionados no seu mesmo nível emocional para engajarmos com a trama. O desenrolar da narrativa, em primeiro lugar, nos revela informações relevantes sobre o enredo ao mesmo tempo em que o protagonista às descobre, de modo que tais informações surgem carregadas de impacto emocional – em outras palavras, o filme é cuidadoso em fazer-nos reagir da mesma forma que o faz o personagem principal, ao longo da progressão dramática.


Ademais, em segundo lugar, a encenação de Spike Jonze constrói atmosferas visuais que remetem diretamente aos estados emocionais de Theodore. Um plano aberto do personagem melancólico que abre espaço para o peso dos arranha-céus da cidade impondo-se sobre ele num dia nublado? Melancolia. Um plano próximo, uma câmera solta, brincalhona e espontânea registrando personagens sinceramente alegres? Alegria, euforia. Uma associação entre planos desses tipos? Saudade. E quando um desses planos alegres acontece no momento presente da narrativa? Bem, esse é o platô cinematográfico em que o filme chega para expressar a mais pura e genuína felicidade.



Ainda, a câmera de Ela recorrentemente se aproxima intimamente do protagonista, de modo a captar com detalhes as nuances emocionais que surgem no seu íntimo e despontam no seu semblante, ao que ele experimenta toda a variedade emotiva da verdadeira relação de amor. É de se elogiar a sensibilidade do ator Joaquin Phoenix de entender a nuance emocional de cada cena e reagir de acordo com notável naturalidade, transformando-se ele próprio no organismo que nos suscita, com igual espontaneidade, os sentimentos do seu personagem. Ou seja, no desenrolar de Ela, não tarda para que a jornada de Theodore, sobretudo a sua jornada emocional, se torne a nossa própria.


É aí, aliás, que o recurso da ficção-científica se mostra o mais expressivamente útil: ao nos apresentar a um personagem que se relaciona com uma inteligência artificial ultra desenvolvida (portanto, um ser não corporificado, quase como um fantasma, que tanto também está nessa jornada de autodescoberta e auto-aprendizado, ainda que em sentidos mais literais, quanto configura-se como um ser efetivamente fora do alcance do protagonista, por mais íntimos que eles venham a se tornar), o filme tem apenas ele, Theodore, para nos cativar emocionalmente. Logo, Theodore tem apenas as próprias emoções para sentir, assimilar e compreender.


Eis a efetividade da aproximação íntima de nós para com o protagonista que Ela promove: durante o filme, estamos sempre juntos de Theodore, ao que ele processa e compreende as suas emoções, apesar e além de qualquer entendimento racional sobre o que é o amor, como ele funciona e como ele se manifesta – da mesmíssima forma como ele não entende (nem nós) Samantha, em termos de como ela funciona e de que maneiras ela, como uma inteligência artificial, se diferencia dos seres humanos, o que é especialmente relevante na segunda metade do longa.



No entanto, a experiência com ela não deixa de ser verdadeira. A relação de Theodore por Samantha, e de Samantha por Theodore, isto é, não deixa de ter sido real: vimo-la acontecer. E toda a paixão que eles viveram, tudo o que eles sentiram, das alegrias às dores, também não deixa de ter sido real: sentimo-la acontecer.


Então, será que Theodore estava realmente num relacionamento ou estava, no fim das contas, se relacionando com um computador ultra inteligente? Será que Samantha é uma mulher real, ou nada mais do que uma voz artificial programada especificamente para sê-la? E, acima de tudo, como é possível que a inteligência artificial transcenda as barreiras humanas, escape do controle dos seus criadores e adquira o domínio sobre a própria existência? Bem, é difícil encontrar respostas claras para essas perguntas. Tropeçaríamos nos nós que a ideia de Samantha conseguir manter mais de mil conversas simultâneas produziria em nossas mentes.


Ainda assim, não importa, porque Ela não é sobre a racionalidade do entendimento de o que é o amor, e sim sobre a progressão emocional da sua experiência, de modo que, no final, tenhamos apenas as emoções para digerir, refletir e, quem sabe, aprender com elas ­– sobre a natureza dos relacionamentos, sobre as delícias e as dores da vida, sobre nós mesmos.


Em suma: não se trata de um filme sobre tentar entender, e sim sobre aprender a como sentir. E que vontade irreprimível ele nos dá por querer sentir…


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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