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Dançando no Silêncio (2023) | Corpos que falam

Mounia Meddour usa a expressão corporal para lidar com os traumas da Argélia em um filme que equilibra a sutileza dos movimentos com o pesar dos sentimentos



A premissa de Dançando no Silêncio pode parecer frágil ao explorar uma lesão que afasta a bailarina de seus sonhos, e embora exista um desenvolvimento mais profundo além desse ponto de partida, há sim uma simplicidade na trama, que de forma alguma a torna menos poderosa. Ao usar os corpos dessas mulheres como linguagem de seu filme, Mounia Meddour cria um desabafo sobre traumas que não são particulares, mas coletivos, num rancor com seu próprio país, é simples, mas consciente na sua expressão dramática. O trauma de Houria (Lyna Khoudri) é resultado da mesma violência que afetou todas as mulheres que se unem a ela, inclusive sua mãe. Todas fadadas a abandonarem algo, a fala, o ato de dirigir ou a dança, por feridas deixadas por homens anistiados, livres, enquanto elas seguem presas. O silenciamento daqueles que não tem escolha nesse perdão dado se transforma em expressão de corpo, pela dança e pela língua de sinais. Assim como a dança é uma forma de comunicação que usa o corpo, os sinais como idioma dependem de uma forte marcação das intenções para comunicar sentimentos. Mounia constrói esse caminho do aprendizado a uma união mais concreta entre as duas coisas que não busca uma cura para as dores, nem individual nem coletiva, e sim um desafogo. Houria não volta a falar não porque não precisa, ou não é capaz, mas porque sua jornada não caminha para uma resolução.


Os movimentos no longa são muito integrados à natureza, como dando liberdade para as bailarinas, misturando seus passos com o céu, a água e o vento. A dança do ventre praticada pela mãe, por exemplo, é historicamente um tabu em diversos países onde mulheres eram até proibidas de dançar ou usar certos trajes e tidas como vulgares, só podendo se apresentar em locais praticamente clandestinos. Assim, a diretora parece querer colocar a dança, bem como os corpos femininos, para fora dos espaços fechados, abandonando o balé clássico do começo da história para explorar algo mais livre e aberto. O que pode soar simplesmente como uma metáfora dramática sobre um renascimento - da morte da carreira clássica para um novo começo sem tantas amarras e influências externas - tem na verdade uma finalidade mais concreta, como forma de tornar o corpo menos rígido, transformado-o num condutor que se comunica e extravasa uma relação política de limitações e medos. O novo grupo de colegas que serve como um recorte de consequências do terrorismo entrega a Houria a língua de sinais e em troca, todas aprendem também a se expressarem com seus corpos. Dar a uma mulher o poder de se expressar usando seu corpo é quase natural em muitos lugares, e em outros é quase uma revolução.



A relação com a natureza também se faz presente nos animais, que contrastam a sutileza dos movimentos coreografados com a brutalidade da luta, nos movimentos da apresentação que se tornam mais animalescos conforme a sensação de injustiça aumenta e também nas desconfortáveis cenas que pontuam a ignorância dos líderes políticos representados nos nomes dos carneiros. Da mesma forma, são as águas que levam a melhor amiga de Houria, numa solução um tanto problemática, menos frontal e bem batida ao falar de imigração e o sonho de viver na Europa. Portanto, é na expressão artística que o filme brilha de forma muito mais autêntica, quando deixa os corpos falarem e sentirem, e parece unir um rancor coletivo na sua própria língua, sem depender de referências externas para se manter. É muito interessante o uso da língua de sinais no longa, ainda que esteja em alta no cinema atual - o que é ótimo - por essa comunicação que independe de um entendimento total de vocabulário. Mesmo que seja óbvio que é necessário um aprendizado na língua para a compreender completamente, ela é carregada pela intenção das expressões faciais e intensidade dos gestos que são capazes de traduzir emoções mesmo que não conheçamos todos os sinais. É o mesmo com a dança, e com a arte, que dependem muito da sensibilidade e bagagem do espectador para criarem algum sentido. A tradução na coreografia final se justifica, mas todos ali poderiam perceber o que Houria está sentindo apenas pela sugestão e por sua capacidade de comunicar com o corpo.


Dançando no Silêncio é, portanto, praticamente um estudo de expressão corporal, que pode se conectar mais ou menos a depender da sensibilidade e conexão que cada um possa ter. E em algum universo mágico onde acreditamos que algumas obras são quase feitas para nós, uma filha de bailarina que cresceu cercada de mulheres aprendendo a dizer muito por meio de seus corpos e que também estudou língua de sinais, se sentiu extremamente emocionada a cada passo, ritmo e gesto assistido.


Nota da crítica:

4/5




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