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Corpo e cinema - Titane e os filmes de Julia Ducournau

A trajetória da diretora que venceu a Palma de Ouro com um cinema que nos faz sentir tudo na própria pele enquanto reflete sobre questões femininas.



Em 2016, a diretora francesa Julia Ducournau ganhou visibilidade após lançar Grave em Cannes. As polêmicas giravam em torno do horror do filme e sua dita temática canibalista, que teria chocado as audiências. Cinco anos depois, a diretora se tornaria a segunda mulher na história a receber a Palma de Ouro com Titane (2021), um filme que divide o público por onde passa no melhor estilo “ame ou odeie”. Mas, com uma carreira de poucos anos, o que faz Ducournau chamar tanta atenção e criar polêmicas com seus filmes?


O cinema foi considerado, teoricamente, por muito tempo uma experiência sobretudo visual, mas alguns gêneros ultrapassam essa barreira e tem o poder de instigar nossos outros sentidos. A estudiosa do cinema Linda Williams denominou o terror como um dos “gêneros do corpo”, em que os filmes lidam com os fluidos corporais de forma a envolver o espectador, o tocar, rompendo com o distanciamento entre o público e a obra. Portanto, não é exclusividade do cinema de Ducournau provocar essas sensações que se aproximam de quem assiste a seus filmes, mas sim uma característica do horror que ela trabalha muito bem e que nem sempre agrada a todos. Por isso, é possível ver pessoas se contorcendo nas sessões de Titane e ouvir os boatos de desmaios nas exibições de Grave. Os filmes da diretora quebram o distanciamento e nos tocam diretamente, trazendo o desconforto da tela para o nosso corpo, mas além disso, trazem o olhar feminino, uma perspectiva de uma mulher sobre questões femininas.


Junior (2011), seu primeiro trabalho, um curta metragem disponível na Mubi, já mostra bem o estilo da diretora. O corpo é um objeto de estudo para Ducournau, que ela disseca e nos mostra por dentro e por fora, com todo seu sangue, fluidos, dores e aflições. No curta ela explora a puberdade como uma transformação animal, quase doentia, no corpo de uma menina que se transforma em mulher e como isso pode ser doloroso, nojento e angustiante, levando a esse amadurecimento que nos coloca como fêmeas mais atrativas para o mundo. Além do horror corporal, a diretora também explora sempre em seus trabalhos as questões femininas: sexualidade, pressões estéticas, opressões e afins são temas recorrentes em seus filmes. Mas o mais importante é como ela faz isso.



Seu trabalho seguinte, Mange (2012), um filme para televisão e difícil de se encontrar, lida com transtornos alimentares e rivalidades femininas. Apesar de ser um trabalho bem diferente de tudo que Ducournau fez depois visualmente (e no qual ela divide a direção com Virgile Bramly), as questões femininas estão lá, com outra roupagem e uma qualidade bem inferior, talvez por isso seja uma trabalho tão esquecido da diretora francesa. O que chama atenção nesse filme é justamente a falta de tudo aquilo que torna o cinema da diretora tão fantástico, as sensações provocadas pelo impacto das imagens e os sons que ultrapassam os limites da tela e nos trazem aflição. Em Mange tudo é mais psicológico e menos sensorial, um desvio no caminho que vamos percorrer nos próximos filmes.



Grave (2016) foi o filme que trouxe visibilidade para Julia Ducournau. A história sobre uma família vegetariana que tem uma tradição na faculdade de medicina veterinária gerou polêmica sendo o primeiro contato do grande público com o estilo da diretora. No longa, a jovem Justine (Garance Marillier) começa a sentir um apetite incontrolável por carne humana após um trote da faculdade. Em Grave, o universo feminino é colocado em pauta através do amadurecimento da protagonista que começa uma nova fase em sua vida, longe dos pais, e tem seu despertar sexual ao mesmo tempo que desenvolve esse desejo por carne. Com sua irmã mais velha sendo veterana na faculdade, Justine passa por questionamentos comuns na vida de toda jovem sobre seu corpo, roupas, padrões estéticos e sexo. Em uma das cenas sua irmã a ajuda a se depilar, como se essa fosse sua iniciação na feminilidade guiada pela mentora, a irmã mais velha. O mesmo acontece com seu canibalismo, a mesma mentora a ensina a caçar a carne humana, a ensina a se alimentar e a viver bem com seus instintos.


A diretora parece traçar um paralelo sobre a vida das mulheres e como somos ensinadas por outras a passar pelo mesmo caminho, aprender a conviver com as expectativas que a sociedade tem de nós e como esconder os instintos que temos que não serão bem aceitos. Possivelmente a maioria das mulheres tem lembranças de seu amadurecimento e os conselhos recebidos. É como se em Junior a puberdade viesse mas o corpo daquela mulher ainda pudesse esperar mais transformações (temos a mesma atriz protagonizando ambos filmes) e é aí que entra Grave.


O que veríamos a seguir em Titane já começa a chamar atenção nesse longa. A forma como a câmera de Ducournau filma a pele se rompendo, a carne rasgando, os dentes mordendo, e que faz tudo parecer muito real. O som é o grande aliado nessa sensação, provocando aversão em algumas pessoas, as cenas mais intensas são feitas para serem sentidas na própria pele. Em muitos momentos o longa me lembra Desejo e Obsessão (2005 - Claire Denis), que trabalha muito bem essas sensações. Ao final, o canibalismo é revelado como uma maldição familiar, mas não apenas isso, uma maldição das mulheres, passada da mãe para as filhas.



Com essa ainda curta trajetória, chegamos a Titane, o filme vencedor da Palma de Ouro do ano passado (2021), que consagrou a diretora como a segunda mulher a vencer o grande prêmio em Cannes. Mesmo depois de 74 anos de premiação, a Palma de Ouro só tinha sido entregue a mais uma outra mulher, Jane Campion em 1993 por O Piano. No Brasil, tive a oportunidade de assistir a Titane na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e desde então tenho observado a recepção divisiva do filme que ou agrada muito ou desagrada completamente.


Titane já começa nos mostrando que o som será essencial para construir o que tem a dizer, e devo comentar que nisso a experiência do cinema tem muito a acrescentar. Alexia ainda criança está imitando o som de um carro e irritando seu pai que dirige, com quem ela claramente tem uma relação conturbada e distante. Após um acidente, a menina ganha uma placa de titânio na cabeça, o que logo em seguida nos dá indícios de ter criado alguma conexão mais íntima entre ela e os veículos. Já adulta, Alexia (Agathe Rousselle) é uma dançarina em exposições de carros, fazendo performances com roupas curtas enquanto se esfrega nos automóveis. Não só ela, como muitas outras mulheres. A câmera nos faz passear nesse ambiente que as fetichiza, com seios enormes contra os vidros e homens as assediando, esse é claramente um lugar que sexualiza as mulheres e coloca seus corpos com o único propósito de entreter o olhar masculino. Mas, como veremos em breve, para Alexia isso tudo tem outro significado. É possível perceber a diferença estética entre as cenas da protagonista dançando no carro, que colocam seu corpo como um objeto sexualizado, e o restante do filme que lida com o corpo de forma totalmente diferente.



Em pouco tempo o longa nos mostra a protagonista como uma assassina, que mata um homem causando dano em seu cérebro. Logo em seguida, ela segue o chamado do carro com quem dançou e sua atração por veículos se mostra algo ainda mais físico. Numa cena com clima sombrio a vemos fazer sexo com o carro, acrescentando o elemento fantasioso nesse horror. Com isso, na primeira parte do filme temos a impressão de que a história seguirá esse tema, sobre uma mulher psicopata que tem relações com carros, mas, então, tudo foge do controle. Numa sequência que mistura humor e horror, Alexia mata diversas pessoas, mas acaba deixando uma delas escapar. A cada pancada e osso quebrado os sons carregam o poder de nos causar aflição, não vemos o banco atravessar o crânio do rapaz mas sentimos nosso corpo se retrair apenas com a ideia que o som gera em nossa mente.


É depois dessa bagunça que a protagonista foge e destrói completamente sua identidade, de forma física. Para assumir a persona de Adrien, Alexia se machuca, quebra ossos e esconde uma das características que a faz parecer mulher, seus seios. Ela se transforma para se esconder e é aí que o filme toma novos rumos, ainda mais interessantes.



Agora, como Adrien, um menino desaparecido há muitos anos, a protagonista precisa enganar e conviver com o pai do garoto, um chefe do corpo de bombeiros. Vivendo nesse ambiente predominantemente masculino, ela ainda precisa esconder uma gravidez. Viver essa nova personalidade mutila Alexia todos os dias, seu corpo começa a ter diversos cortes e machucados das faixas que usa para esconder os seios e a barriga, além das feridas que a própria gestação causa. O corpo de Alexia/Adrien se torna um lugar de dor e ela passa pelas mudanças da gestação de uma forma peculiar, já que ao invés de sangue e leite todos seus fluidos são pretos e densos como óleo de carro. As expressões da atriz, Agathe Rousselle, as imagens do corpo e os sons fazem as dores da personagem serem ainda mais viscerais para nós. Em certos momentos, a coceira em sua pele é tão intensa que causa angústia em quem assiste, como se nossa própria pele fosse se romper com a dela.



Nessa jornada de mudanças, o pai, Vincent (Vincent Lindon), é um homem que tem dificuldades para lidar com o envelhecimento do seu corpo e com o desaparecimento de seu filho. O retorno de Adrien preenche algum vazio dentro dele, mesmo que ele saiba que aquele não é realmente seu filho. É como se os dois estivessem servindo à alguma função nessa relação. Alexia, que nunca teve uma relação amorosa com seu pai, encontra em Vincent uma figura de amor e Vincent, que sempre sentiu saudades do filho, encontra em Alexia a chance de curar esse luto, uma nova chance para amar e cuidar de alguém como fazia com Adrien.



Entre os outros trabalhos da diretora, Titane é o filme que mais explora as nuances da masculinidade, não focando apenas no feminino. Algumas cenas no corpo de bombeiros me remetem a outro longa de Claire Denis, Bom Trabalho (1999), que também lida com questões do masculino. Apesar de toda a violência e horror do filme, vemos nessa segunda parte uma história mais profunda e íntima, que questiona as falsas armaduras da masculinidade, trazendo vulnerabilidade para aqueles personagens, e que também é uma história sobre amor e aceitação que perpassa o gênero. Não importa para Vincent quem Alexia é, mulher ou homem, importa que a presença dela preenche um vazio em sua vida. Para Alexia, assumir uma nova persona foi o caminho para encontrar a conexão humana que nunca teve com o pai, se sentir aceita e de, eventualmente, aprender a amar o bebê que carregava.


Mas, como ainda estamos falando de um filme de horror, o corpo de Alexia se deteriora cada vez mais com a gravidez até chegar ao momento do parto, quando sua pele se rompe ainda mais, revelando seu interior metálico. Sentimos novamente a angústia, o cinema que extrapola a tela e é sentido na pele, enquanto o corpo da personagem se destrói para dar a vida a um bebê com coluna de titânio, um amor que nasce no meio do horror, das dores, tristezas e angústias, que mata a mãe e traz um novo afeto para a vida de Vincent.



Seja em Grave ou em Titane, as personagens de Ducournau não estão aqui para agradar aquele que sempre foi o principal detentor do olhar no cinema: o homem. As mulheres em seus filmes são monstruosas, capazes de atitudes cruéis e não servem ao olhar masculino e sim a elas mesmas. Elas não são vítimas dos homens e sim do que é natural e sobrenatural dentro do universo feminino (o amadurecimento sexual e a maldição canibal em Grave | a gravidez e a relação com carros em Titane).


Alexia podia estar em um ambiente que a sexualizava, mas sua dança sensual com o carro só servia a seu próprio desejo e o homem que cruzou seu caminho achando que poderia se aproveitar dela acabou morto. Os corpos aqui são o que são, corpos, e não são filmados com o intuito de satisfazer um olhar, eles tem um propósito dentro da narrativa e servem aos desejos, e às dores, de suas personagens.


Com tudo isso, vemos o amadurecimento da diretora que traz todos os elementos já presentes em Junior e Grave de uma forma mais consciente em Titane. É um cinema de e sobre corpo, sobre as mudanças e adaptações que nossa pele enfrenta e as dores e feridas que carregamos por consequência. Nesse último trabalho, Ducournau parece ter total controle de sua direção e do que quer provocar em nós. Muito além do choque, o filme tem algo a dizer e nos fazer sentir, seja bom ou desconfortável, Titane não se preocupa em agradar ninguém.


Titane está disponível com exclusividade na Mubi.




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