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Carvão (2022) | O instinto acima da emoção

Em seu primeiro longa, Carolina Markowicz cria provocações ao naturalizar o absurdo em um lugar que sobrevive de acordo com suas próprias regras



Ao primeiro olhar, Carvão retrata de forma bem realista uma família brasileira que vive com dificuldade em um lugar remoto. A pequena comunidade, o sistema público de saúde, a relação entre vizinhos, a igreja e a fé local, bem como as relações da família central, tudo parece exatamente como é, até o primeiro estranhamento dizer que essa não é uma história comum de cotidiano e adversidades de uma família pobre, mas algo muito mais interessante sobre eles.


A sobrevivência é a prioridade dessas pessoas, o que faz com que as regras dessa pequena sociedade sejam outras. Em muitos momentos o filme contextualiza visualmente esses personagens, suas casas isoladas e lugares vazios cercados de natureza, mostram que não há ninguém olhando por, nem para, essas pessoas. Assim, mais vale o instinto de fazer o que se acha necessário para sobreviver do que a moral que rege o mundo. Isso tudo também transforma essas pessoas em alvos fáceis de um esquema duvidoso para abrigar um traficante estrangeiro.


Há aqui um olhar muito frio sobre a morte, removendo todo sentimento desse momento, como se fosse tão natural quanto qualquer outro acontecimento. Todas as mortes no filme acontecem com um distanciamento que também faz parte de um estranhamento que Markowicz cria a todo momento. Quando a enfermeira sugere matar Firmino, pai de Irene (Maeve Jinkings), as duas não pensam em uma solução indolor ou mais empática para acabar com o sofrimento do idoso, mas o jogam no fogo, sem mais nem menos, simples, rápido, distante visualmente - filmado em plano aberto - e emocionalmente. Momentos como esse se repetem diversas vezes, naturalizando situações absurdas para expor uma realidade de pessoas que foram endurecidas pela vida e por seu meio, colocando suas necessidades acima de qualquer coisa.


Esse instinto que é prioridade para essas pessoas se dá além das mortes banais. O desejo sexual, por exemplo, faz com que tanto Jairo (Rômulo Braga) quanto Irene sigam seus instintos acima da fidelidade de seus casamentos. E ainda que a igreja seja parte importante da comunidade, Irene coloca o que quer acima dos conselhos do padre, se preocupa com o julgamento de Deus, mas se importa mais com ela mesma.


É possível refletir que Carvão fale do pior que existe em todas as pessoas, do egoísmo e da maldade, mas ao mesmo tempo, o filme se preocupa em mostrar que essas questões são consequências de suas condições de vida. Todos aqui são duros porque a vida os fez assim, não há espaço para sentir coisas demais quando é preciso se preocupar com o básico para sobreviver. As dificuldades, os trabalhos incertos e que pagam pouco e as casas amontoadas de coisas precárias, unem essas poucas pessoas em um mesmo universo onde comprar uma coca e um chocolate é estar rico, então ganhar o necessário para viver e se ter o que se quer é a maior lei.


Essa dureza, esse distanciamento emocional, são passados dos pais para o filho. Jean ainda muito criança já se importa muito pouco com as mortes que presencia e é crescente essa frieza nele ao longo do filme, mesmo que seja uma criança totalmente normal, carrega esse lado mais obscuro. Mas, o distanciamento aqui não afasta nenhum um pouco do longa, pelo contrário. Carvão consegue ser divertido ao mesmo tempo que impacta, alternando momentos leves e descontraídos com cenas muito fortes e provocativas.


É possível julgar o pior de alguém que vive na pior? Assim, Carvão mostra que as regras da sociedade mudam de acordo com cada realidade particular.


Nota da crítica:

4/5


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