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As Duas Faces da Felicidade (1965)

Agnès Varda constrói uma obra macabra e arrepiante, que esconde seu horror por trás de uma máscara de leveza e ternura.



Em "As Duas Faces da Felicidade", Agnès Varda manifesta seu interesse na busca por um primor na condução de sua mise-en-scène. No sentido de que cada plano é muito bem pensado numa organização rígida do que virá a ser capturado pela câmera. Nisso, um elemento se destaca: a presença da natureza no filme - flores, a mata, o calor da luz do sol, tudo isso é presente nos planos meticulosamente organizados. Na realidade, esse destaque natural é o que há de mais chamativo em toda uma condução da diretora que se baseia em elementos primordiais, a fim de aproveitar as sensações que surgem da manipulação de recursos simples: "As Duas Faces da Felicidade" utiliza as composições geradas pelas coisas da natureza, junto à gestos sutis e cores primárias para provocar efeitos que vão comunicar seu tema tanto emocional como intelectualmente.


Pensemos, por exemplo, em como a montagem (o corte) surge de modo a contribuir dialeticamente à organização interior dos planos: Varda é altamente sugestiva em sua construção espacial rígida, ao mesmo tempo que também é ao utilizar o corte e o close up para criar um ritmo e uma atonalidade à lá Eisenstein. Essa sugestividade surge de movimentos muito simples: closes de gestos de algum personagem ou de algum objeto, um acontecimento que, aparentemente, não tem relação com a cena mas que se relaciona justamente por essa sugestividade (como o primeiro encontro de François e Émilie, em que momentos de casais se beijando e flertando são intercalados com os dois personagens). Os cortes que permitem tais sugestões são guiados por um ritmo que também constrói tensão - como a tensão sexual entre François e Émilie, que igualmente coloca em risco o casamento do homem caso ele não resista à tentação.


E o filme todo é guiado pela atonalidade entre imagem, som e fato: até o momento de virada total em sua história, ele é conduzido como um romance altamente estilizado - a iluminação é vibrante, tornando as cores também muito marcadas, os personagens interagem como em um grande romance onde são felizes e apaixonados. A princípio, no que é mostrado isoladamente, parece não haver conflito. Porém, como sabemos que François está traindo Thérese, cada momento romântico desses é ressignificado. É cruel como Varda consegue transmitir carinho em tais cenas, porque sabemos que nos sentiremos culpados por enxergar diversão nos momentos de casal de François com Thérese ou dele com sua amante, Émilie. Inclusive, a diretora não diferencia-os: seja com Thérese ou Émilie, François porta-se da mesma forma. Isso é importante na percepção do tema de Varda que irá concretizar-se de fato apenas ao final, que é o grande momento onde fica claro o discurso que a diretora construiu, sutilmente, ao longo de sua obra.



Antes de explorar esse tema, voltemos um pouco à questão dos elementos primordiais em "As Duas Faces da Felicidade": há a natureza e, inserido nela, há o corpo (também uma entidade natural). O corpo é utilizado como material erótico, em momentos reforçados também por closes e cortes dinâmicos na montagem, e essa ênfase nele irá permitir o discurso mais ousado e macabro que há por trás dessa obra de Varda: a percepção da mulher como um corpo, uma "casca", substituível. François, embora esteja em cada momento com duas mulheres diferentes, age como se estivesse simplesmente substituindo Émilie por Thérese e Thérese por Émilie. Sua felicidade é "igual" com ambas, como ele ressalta, e apenas está com as duas porque quer aproveitar de todo o prazer que puder. Olhar o filme por essa ótica poderia parecer não mais que um delírio, se não fosse pela sequência final arrepiante e arrebatadora: é nela em que toda a atonalidade que veio guiando a obra mostra-se em sua maior potência e cria também uma relação atonal com tudo o que veio sendo construído anteriormente.


Thérese suicida-se e, após o acontecido, parece que se irá desenrolar um filme diferente daí em frente: François, nos primeiros momentos, parece estar culpado, um ar fúnebre toma o ambiente. Ao que aparenta, o verão se foi e o outono chegou: folhas secas, um tempo mais frio e que, consequentemente, cria dias mais nebulosos e com um ar mais solene. Essa passa a ser a nova ambientação do filme. Porém, não demora muito para que François volte a encontrar-se e a namorar com Émilie, que então assume um relacionamento com ele e começa a também cuidar de seus filhos. O ar fúnebre jamais vai embora, e a trilha sonora faz questão de reforçá-lo. Entretanto, François está feliz, seus filhos vivem bem com Émilie e tudo parece ter voltado ao "normal", a como era com Thérese: mas ela morreu de forma trágica e sofrida! Ainda assim, não há tempo para o luto, não há de fato uma ruptura na vida de François; a mise-en-scène de Agnes Varda não esquece isso e grita sua melancolia enquanto vemos momentos alegres da nova família. Imagem, som e acontecimento entram em um embate que, tanto irônica como melancolicamente evidencia a figura feminina como substituível em uma realidade onde o prazer do homem importa mais que suas consequências.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.

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