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A Visita (2015) | Dialéticas narrativas no horror found footage

Shyamalan destrói as barreiras que separam autor e obra com um horror found footage marcado por oposições dialéticas em suas escolhas formais



A Visita, de 2015, é um filme de M. Night Shyamalan um tanto diferente: primeiramente pelo seu processo. Com exceção de seu primeiríssimo filme (Praying With Anger, 1992), esta é sua obra mais independente, vindo de um diretor que é figura marcada na indústria de Hollywood. Shyamalan, renegado pelos grandes estúdios, financiou o longa de seu bolso - um sacrifício financeiro que preserva sua liberdade criativa. Então, se podemos olhar para o cinema do diretor a partir de um único filme, A Visita é certamente uma das melhores opções para essa análise.


Se Shyamalan já demonstrava certo interesse por um experimentalismo narrativo em Dama na Água (2006) a partir de uma maneira muito direta e explícita de lidar com a fantasia e com os mecanismos que regem uma clássica jornada do herói, também encontrando em Fim dos Tempos (2008) uma tentativa de encarar o horror de catástrofe através da estranheza formal, em A Visita ele resolve assumir uma abordagem absolutamente moderna para seu filme, ao mesmo tempo que reencena a sofisticação formal de A Vila (2004).


No filme, temos Becca (Olivia DeJonge), uma aspirante a diretora de cinema de 15 anos, que viaja com seu irmão mais novo, Tyler (Ed Oxenbould), até a casa de seus avós para passar uma semana conhecendo-os. Porém, acompanhamos todo o desenrolar da viagem a partir das filmagens de Becca, que quer fazer um documentário de presente para sua mãe, Loretta (Kathryn Hahn), pois, quando mais nova, ela fugiu da casa dos pais, e sua filha acreditava que eles jamais a haviam perdoado. Becca sentia a necessidade de trazer o perdão para a vida da mãe, de forma a “salvá-la”. O primeiro detalhe a se pontuar quanto à postura da protagonista de A Visita são suas percepções de estilo enquanto artista: ela busca um olhar específico com seu documentário, necessitando encontrar os momentos dramáticos chaves para que o perdão seja o tema geral da obra. Ainda assim, não é como se ela se prendesse ao objetivo de fazer com que sua mãe seja perdoada. Becca não lida com sua arte de forma utilitária, ela se interessa monumentalmente pela poesia que pode criar com as imagens que capta. Não à toa, demonstra um bom conhecimento de estética, quando fala com seu irmão para que ele filme de maneira “formalista clássica”, que é exatamente a abordagem central com a qual o próprio Shyamalan lida com a câmera em seus filmes.



As diversas referências aos meios com o qual Becca filma e a escolha de transformar a história em um found footage, trazem essa consciência dos meios narrativos que regem a obra. No caso, o diretor nos evidencia recorrentemente que estamos vendo o filme, em uma postura bastante moderna, nada clássica. Ao mesmo tempo, somos levados a entender que o olhar que guia este filme é da própria protagonista, quase como uma figura extra-diegética, sendo tanto a protagonista como a diretora do que assistimos. Logo, Shyamalan, o diretor de facto da obra, é esquecido. A mise-en-scène é de Becca, levando-nos então a uma percepção clássica de narrativa, aquela na qual estamos “alienados” da presença do autor e dos meios cinematográficos que manipulam a obra. No caso, o que é construído em A Visita é justamente um embate dialético entre a postura disruptiva do found footage - sempre evidenciando um olhar, uma câmera, uma encenação - e a percepção das personagens como as próprias figuras que constroem o filme, tornando mais complexa a relação da postura formal do diretor para com o público. Até aí, esta é uma característica estrutural do found footage, mas, neste filme de Shyamalan, ela será encenada diversas vezes ao longo de toda a obra, em um constante embate dialético entre o formalismo clássico e o modernismo enquanto escolhas narrativas.


Logo após o momento em que Becca pede para Tyler lidar com a câmera de maneira “formalista”, “clássica”, vemos o menino, na cena seguinte, aproximando a filmadora de seu rosto enquanto faz caras e bocas, pouco se importando com qualquer postura mais formal. Tyler é moderno e desafia a maneira de filmar adotada por sua irmã. Em determinado momento, quando ele vai entrevistá-la para o documentário, ao tocar em uma ferida forte com uma pergunta em relação ao trauma que viveram ao serem abandonados por seu pai, Tyler aproxima lentamente a câmera do rosto emocionado e desconcertado de Becca em um zoom-in (contestado também pela irmã). Enquanto o garoto faz um zoom-in evidente e muito expressivo, Becca faz o mesmo ao final do filme, numa entrevista com sua mãe. Porém, ela lida com esta técnica de forma muito mais sutil, tornando o zoom quase imperceptível, aos poucos reenquadrando o rosto de sua mãe à medida que sua fala vai atingindo um determinado clímax.



Essas relações que Shyamalan estabelece com sua forma de filmar, criando um jogo muito interessante a partir da visão estética dos dois jovens protagonistas, revela uma vontade pulsante de brincar e experimentar a partir dos conhecimentos estéticos diversos que o diretor demonstra. O ímpeto poético de Shyamalan neste filme é muito próximo ao de Becca quando cria seu “documentário” (mas, se fosse para citar todas as semelhanças entre M. Night e sua protagonista, seriam infinitas). O grande ponto que encerra o arco dramática de Becca é, inclusive, a percepção de que, enquanto ela acreditava estar fazendo um filme para desvendar o passado de sua mãe e encontrar uma “cura” para a dor dela, esse tempo todo era uma descoberta de si própria enquanto artista e ser-humano, uma viagem emocional e espiritual por dentro das próprias dores, de modo que a cura deveria vir, esse tempo todo, para Becca, e não para um terceiro. É com esta percepção que o filme se encerra. Ao fim, o que podemos encontrar é uma busca de Shyamalan pelo artista em si, a partir do arquétipo criativo da criança (na figura de Becca e Tyler).


Não por acaso este é um dos filmes mais emocionantes do diretor. Tudo é tão visceral, sensorial e emotivo que é impossível não vibrar com o espírito dionisíaco do filme. O medo e a tensão são intensos, Shyamalan jamais recua diante da potencialidade que uma cena tem de criar horror ou de fazer doer as costas de tanto estresse emocional. Igualmente, as partes cômicas funcionam perfeitamente dentro da lógica de descoberta e brincadeira dos jovens irmãos, bem como puro efeito. Por fim, o drama é arrebatador. Nas duas vezes que assisti, chorei incontrolavelmente com a sequência final (anterior ao ótimo pós-créditos). O diretor de fato recusa um certo bom gosto comedido da racionalidade, muito visto dentre aqueles que buscam as “formas corretas” de se fazer um filme. Se é para criar uma cena cômica, e ridícula, ele enfia o pé na jaca, como no rap de Tyler no ‘pós-créditos’. E isso é maravilhoso, porque o que surge desta postura é um desejo de criar poesia e efeitos, tornando A Visita uma deliciosa experiência puramente sensorial enquanto terror, drama e comédia. Semelhante à própria busca de Becca por uma experiência engrandecedora com seu documentário por parte daqueles que forem assisti-lo, ao mesmo tempo que ela não recusa o esplendor de planos e construções dramáticas simplesmente belas, ou seja, que valem, em primeiro lugar, puramente por seus efeitos.


Dessa maneira, todas as relações íntimas que Shyamalan estabelece com seus personagens e com seu filme de forma geral ainda potencializam uma das principais características do diretor em suas obras: a relação entre a sobrevivência a uma experiência de horror com a superação de um trauma. Os personagens de Shyamalan, em geral, costumam enfrentar alguma relação de alto risco com o sobrenatural, com o fantástico ou simplesmente com algo aterrorizante, de modo que, ao voltarem a seu mundo “normal”, conseguem, por tal vivência, lidar com e encontrar a cura para traumas emocionais com os quais conviviam. É certamente muito interessante notar a relação estabelecida entre encarar o horror e, a partir dele, conseguir lidar com o que há de sombrio em si - justamente o que ocorre com a protagonista, Becca, e seu irmão, Tyler, em seus arcos dramáticos para superar o trauma do abandono por parte do pai (podemos observar diversas metáforas para isso como quando Becca precisa encarar o espelho, algo que não conseguia fazer, para sobreviver; e mesmo quando Tyler precisa dar o tackle que não conseguiu em um jogo de futebol americano, decepcionando o pai, para tirá-los da situação de extremo risco na qual se encontravam). Mas, de forma ainda mais especial por conta de todas as relações explícitas entre Shyamalan e sua obra em A Visita, percebemos como a arte e seus efeitos (tais quais o que mencionei anteriormente), em sua inerente Beleza, engrandecem espiritualmente tanto artista como espectadores. O terror e a fantasia são pano de fundo para a criação das imagens que contemplamos ao assistir um filme, imagens que, quando construídas pela paixão, tocam nossos corpos e corações.



A Visita é a apaixonada declaração estética de um dos maiores diretores da contemporaneidade, dentro e fora do gênero do horror. Um artista que se permite ser vulnerável alcança as mais belas criações, e o que pode tornar um diretor de cinema mais vulnerável do que entregar ao público todas as suas ferramentas, como Shyamalan faz na figura de Becca, de modo a abertamente apresentar-se como o principal ator e autor de cada pedaço de imagem na tela?


Apesar da desenfreada transformação da arte em produto e dos filmes de sucesso em coisas que são hegemonicamente resultados de processos industriais e lucrocêntricos, grandes autores ainda habitam este mundo (mesmo no país mais alienado do capitalismo tardio). M. Night Shyamalan é um deles, e A Visita é uma experiência que todos merecem vivenciar.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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