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A velha face de uma nova Hollywood

Conheça as trajetórias de Elaine May e Joan Micklin Silver, duas cineastas que, por vias diferentes, buscavam o mesmo: abrir espaço para as mulheres em uma Hollywood excludente.



Que a indústria Hollywoodiana sempre foi excludente e só agora está dando sinais de melhoras com o surgimento de movimentos sociais, ninguém duvida. Mas, no início dos anos 70, onde o universo cinematográfico americano era tomado pela “revolução” imposta pela “Nova Hollywood”, onde os cineastas componentes dos cânones dos “melhores de todos os tempos” estavam começando a surgir e já tomavam conta das listas de críticos e das maiores bilheterias, ser uma cineasta tentando impor sua marca autoral era mais uma aflição do que uma condição. As duas opções disponíveis para se infiltrar na cena eram insuportavelmente árduas: financiar seu próprio filme sem a ajuda de quase ninguém ou então vencer a batalha contra tudo e todos e se impor perante as grandes distribuidoras.


O primeiro caminho foi traçado, em grande parte de sua carreira, por Joan Micklin Silver, cineasta que faleceu recentemente, e o segundo constituiu a luta diária de Elaine May, que apesar de ter tido contrato com marcas como Paramount, não levava desaforo de ninguém para casa, e tentava, muitas vezes trazendo casos para a justiça, conseguir direitos que qualquer diretor homem conseguiria. O fato é que as duas tinham personalidade forte e não se deram por vencidas. Constantemente, eram atacadas por pretensos especialistas ou homens engravatados, mas, felizmente, a internet e o revisionismo crítico foram generosos com elas, e, hoje, seus trabalhos podem ser encontrados como parte do acervo da curadoria da Criterion Collection, seja em seus filmes comercializados em Blu-Ray ou DVD ou nos lançamentos de sua plataforma de streaming, a Criterion Channel.



Se hoje o sistema é muito mais inclusivo e o cinema é mais receptivo, é porque essas mulheres estiveram lá. Mesmo que, por um longo período, suas obras tenham caído no ostracismo, hoje não há dúvidas de que elas inspiram novos nomes. Não é à toa que, em 2020, estudos da Universidade Estadual de San Diego mostraram que o número de filmes dirigidos por mulheres atingiu uma cota recorde de 16%, um aumento considerável em relação aos 12% de 2019. Em 2021, o número caiu, mas ainda segue um bom rumo. A porcentagem torna-se ainda maior quando analisamos que, com diretoras por trás da câmera, mais da metade da equipe, incluindo roteiristas, também são mulheres.


Talvez hoje seja mais fácil se ater a essa estatística, mas, no século passado, era muito difícil. Elaine May, sem dúvidas, constitui um grande estudo de caso nesse sentido. Antes de ser diretora, era roteirista, atriz e dramaturga (não necessariamente nessa ordem, às vezes era tudo ao mesmo tempo), e ficou famosa como par de Mike Nichols em improvisações de comédia, seja no palco ou em programas de rádio (eles até gravaram álbuns cômicos juntos), mas sempre gostou de estar envolvida no meio artístico e se manteve ativa atuando, antes de começar a dirigir. Sua versatilidade foi ofuscada por uma carreira injustamente boicotada, e é um exemplo de como era difícil exercer sua criatividade plenamente, ainda mais em uma Hollywood conservadora, sem a interferência do estúdio.


Em seu primeiro filme, "O Caçador de Dotes" (versão lamentavelmente traduzida de "A New Leaf"), de 1971, Elaine teve que enfrentar a revolta dos magnatas da indústria e chefes de estúdio em aceitar a versão final de sua obra, que teria três horas de duração e cenas ousadas, além de um outro final. Com a interferência externa, o filme perdeu em ironia e ganhou em doçura, mas não era a vontade inicial dela. No ano seguinte, dirigiu “O Rapaz Que Partia Corações”, estrelado pelo finado Charles Grodin, Cybil Sheperd e a filha da diretora, Jeannie Berlin, contando, ainda, com roteiro de Neil Simon. Talvez tenha sido sua comédia mais bem-sucedida, e prova disso é que gerou um remake estrelado por Ben Stiller, em 2008, “Antes Só do que Mal Casado”.



Em 1973, ela havia começado a rodar seu próximo filme, o existencial, niilista e com doses de realismo, à la John Cassavetes (que atua aqui ao lado de Peter Falk), “Mikey & Nicky”. Mais uma vez, a realização do filme se mostrou uma verdadeira batalha interna de Elaine versus o mundo. É impressionante como absolutamente ninguém de fora da equipe de produção ou do elenco lhe dava apoio. Tudo contava de forma contrária à sua exibição. A diretora chegou a esconder a bobina do filme em sua garagem, e a obra só foi lançada três anos depois, em 1976.


No filme, Elaine extrai das certezas do universo policial um “slice of life” em que a noção de existência por si só já impõe a luta pela sobrevivência, mas os dois protagonistas dela não buscam superar nenhum vilão ou adversário, e sim eles mesmos, com as crenças e achismos de um passado que ainda não foi vencido. Em determinado momento, Nicky (Cassavetes, em uma atuação em que é possível ver, nas suas expressões, os rostos de todos os atores que dirigiu) diz para Mikey que está tudo na cabeça deles, a infância de ambos foi uma construção, então ninguém mais a viu. Como as ações desses homens se passam à noite, a passagem do tempo é a única testemunha do que eles fizeram ou deixaram de fazer. Eles estão por eles mesmos, corpos solitários vagando por aí como fantasmas mal resolvidos com o lugar de onde vieram: com a barba por fazer, sem sobrenome, sem um passado definido, e sim um rascunho de várias lembranças. Definitivamente, o espírito que ronda esse filme é assombrado. Ele até aposta no humor, mas o leva a esferas mais macabras e profundas. De certa maneira, vai na linha contrária de “O Poderoso Chefão”, sendo um filme de máfia muito mais atmosférico que a obra de Coppola, com menos pretensão e menos pompa.



O principal caso de negligência na carreira de Elaine como diretora pôde ser visto em "Ishtar", de 1987, um claro exemplo de como a indústria do show business (o que inclui críticos e o elenco) tem poder suficiente para destruir a reputação de uma obra sem nem mesmo vê-la. Estrelado por nomes de peso como Dustin Hoffman, Warren Beatty e Isabelle Adjani, "Ishtar" provou que Elaine é uma legítima autora, que se impunha no set e, se precisasse filmar a mesma sequência em várias tomadas, o faria, o que gerou atritos entre ela e os atores. Até hoje, o filme é exemplificado como um dos principais fracassos de bilheteria da história e um dos "piores filmes de todos os tempos", mas há uma nova tendência em redescobri-lo e reavaliá-lo.


Com 89 anos, Elaine nunca mais dirigiu obras de ficção, mas segue escrevendo e atuando em peças de teatro. Que sua carreira possa ser explorada por novos cinéfilos, sem preconceito e com mente aberta, ao lado da já citada Joan Micklin Silver, que fez mais filmes do que Elaine, mas foi ainda menos conhecida, e só trabalhou com o sistema de estúdio em três ocasiões, sendo duas delas em “Chilly Scenes of Winter” (que não recebeu tradução em português) e “Amor à Segunda Vista” (ou “Crossing Delancey”, no original).



Em “Between the Lines”, seu segundo filme, que financiou de maneira independente, a história que ela conta não possui protagonistas, porque é entrelaçada em formato de mosaico, com várias situações distintas unidas pelo mesmo propósito, uma mesma causa. No caso, é um tema que me interessa muito: a convivência de uma equipe de jornalistas dentro da redação, naquela correria do dia-a-dia para diagramar matérias, conseguir um furo, tomar um cafezinho como desculpa para fofocar sobre o chefe ou até quebrar objetos dentro da sala e dizer que é arte conceitual (talvez a cena mais engraçada de todo o filme). Nos últimos dez minutos, todos os núcleos se fecham e a sensação é a de ter passado uma semana ou mais com essas pessoas. Acabou servindo como prévia para o filme “Nos Bastidores da Notícia”, lançado 10 anos depois, de James L. Brooks.


O estúdio sempre quis fazer de seu filme seguinte, “Chilly Scenes of Winter”, uma história de amor, e Joan não poderia se importar menos (e até tirar proveito da situação) com o rótulo. Sob o disfarce aparente do casal apaixonado, esse é um estudo de personagem de um homem solitário, como tantos outros feitos de 70 em diante, mas dirigido por uma mulher, que humaniza todo o resto, enquanto o protagonista, Charles, em sua busca por carinho e compreensão, sufoca em si mesmo. É insuportável ouvi-lo e até olhar para ele.


Quando ele encara Laura (Mary Beth Hurt) na cozinha, olha no fundo dos olhos dela e diz em vão que quer estuprá-la, em um momento em que qualquer outra pessoa teria dito “Eu te amo”, me causou uma sensação imediata de incômodo muito maior do que em qualquer filme considerado perturbador. Lembrei da música “She's a Jar”, do Wilco, em que Jeff Tweedy muda o que havia dito no início da música (“Com sentimentos escondidos, ela me implora para não sentir sua falta”) para dizer, no último verso, “Com sentimentos escondidos, ela me pede para não bater nela”. Ao colocar uma personagem masculina nessa condição ameaçadora, Elaine também mostra que seu cinema pode apontar para a denúncia, e reitera sua posição cultural e social de realizadora atenta para o desenrolar da vida aqui fora. O momento é verdadeiramente arrepiante, e John Heard merece todos os créditos por sua intensa atuação, com seu olhar penetrante e seus gestos persuasivos.



Pulando quase uma década, vamos a um filme completamente diferente dentro de sua filmografia, o otimista e esperançoso “Amor à Segunda Vista”, distribuído pela United Artists, que foi considerado “étnico demais” pelo estúdio, por contar uma história de amor sob o prisma do judaísmo, entre um modesto vendedor de picles e uma escritora nova iorquina. Sem o cinismo dos filmes anteriores, mas também com uma certa melancolia no ar, foi, provavelmente, o mais próximo que ela chegou de realizar um sucesso comercial.


Ainda que seguindo caminhos diferentes, as duas encontraram dificuldades inerentes a seu estado aflitivo, de sempre estarem buscando espaço, e assim seguirem até o fim. Mesmo que com carreiras curtas e/ou pouco favorecidas por um olhar mais abrangente, não passaram batido por quem realmente importava, e conseguiram criar obras versáteis e resistentes ao período em que foram feitas, servindo, seja no drama, na comédia, ou até no filme de gângster existencial, para todos os públicos. É importantíssimo o trabalho de divulgação desse material que a Criterion Collection faz, e acabou permitindo que pessoas do mundo todo tivessem contato com uma Hollywood menos enviesada.


Fontes:



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