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A Rosa Púrpura do Cairo - Cinema é refúgio

A ruptura da passividade espectatorial como destaque a quem ama e cultua a sétima arte



O começo deste texto será bastante pessoal (talvez mais do que uma crítica deveria ser). Mas a minha relação com A Rosa Púrpura do Cairo exige que eu seja franca. Esse filme foi um daqueles que eu sempre soube que iria amar, que se tornaria especial, e sendo assim, adiava assisti-lo, deixando-o para um momento especial.


Por um convite para a produção de um determinado conteúdo de cinema sobre alguns filmes do Woody Allen, acabei assistindo (spoiler: o conteúdo nunca foi ao ar). Sabe quando vemos algo tão especial e belo que os olhos brilham? Então, isso é A Rosa Púrpura do Cairo. Acredito (até os filmes que já vi) que esta é a melhor obra cinematográfica que homenageia o cinema, que evidencia a ação ativa do espectador.


Quando pensamos em filmes, às vezes nos atentamos apenas ao que está à nossa frente. Diretor, atores, elementos narrativos etc. No filme em questão, há uma ruptura da passividade do espectador, é dado um destaque a quem ama o cinema e cultua a sétima arte.


Na obra de Woody Allen, é explorada a beleza do cinema para o espectador. Mas não apenas o cinema enquanto filme, como também o espaço do cinema, a sala de exibição.

'A Rosa Púrpura do Cairo' é a declaração aberta ao público (de acesso e identificação) do amor de Woody Allen ao Cinema, e repito, não apenas o filme e sua concretização enquanto arte, mas sim ao espaço físico, o templo exibidor de um espetáculo.


A sala de cinema desperta em nós (principalmente os apaixonados por essa arte) uma sensação de conforto e aconchego. O lugar escuro e silencioso, de isolamento, mas também de socialização e contemplação. Cinema como meio que nos teletransporta e nos faz viajar.



Este é também o filme do Woody Allen menos 'filme do Woody Allen' que existe. O diretor 'se desprende' da sua obra, não tendo aquele personagem clássico e caricato típico dos filmes do diretor americano. Deixando claro que o foco do diretor é a representação e homenagem ao cinema em A Rosa Púrpura do Cairo.


Cecília é a personagem principal, uma mulher em uma vida miserável e infeliz, que vê no cinema uma forma de escapar de sua penosa realidade. Acho que muitos de nós fazemos isso. Por meio de uma tela, somos capazes de viajar e esquecer nossos problemas, não que precisemos ver nos filmes apenas cenas felizes.


Em "A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica", de Walter Benjamin, o teórico traz a discussão sobre a função social da arte (e consequentemente, dessa arte tão nova que é o cinema). Analisando a relação dos trabalhadores (a massa) com o cinema, Benjamin compreende que o trabalho (tanto a máquina quanto a ação) alienam e manipulam o homem (assim como Marx já dizia). Deste modo, o cinema funciona como lugar para escape, uma fuga dessa realidade a qual é condicionado por aparelhos.


"O cinema serve para exercitar o homem naquelas apercepções e reações condicionadas pelo trato com um aparato, cujo papel em sua vida cresce diariamente" - Walter Benjamin


Dentro das devidas comparações, Cecília, nessa vida sem perspectiva, vê na sala de cinema e em seus filmes uma forma de escapar da realidade. Nessa sala escura com projetor, Cecília 'sai' do mundo real.


Para Walter Benjamin, como o cinema é uma arte que absorveu completamente a obra de arte, de fato representa uma válvula de escape para as massas. Essa fuga é justamente no que chama de "psicose das massas" e completa com a ideia de "vacina psíquica".



"Levando-se em conta as perigosas tensões que a tecnização, com suas consequências, engendrou nas grandes massas - tensões que, em estágios críticos, assumem um caráter psicótico - , então, reconhecer-se-á que essa mesma tecnização criou, contra tais psicoses das massas a possibilidade de uma vacina psíquica por meio de certos filmes, nos quais o desenvolvimento forçado de fantasias sádicas ou delírios masoquistas pode impedir o amadurecimento natural e perigoso destes nas massas." - Walter Benjamin

Cecília vive com um marido agressivo, preguiçoso e alcoólatra, trabalhando como garçonete, apesar de ser extremamente desajeitada para isso. A ingenuidade e a forte crença na esperança do futuro acabam por condicionar Cecília a esta vida miserável, junto a uma carência e solidão no contexto da depressão americana de 1929.


Completamente desleixada e boba no trabalho, Cecília é demitida e, triste, decide ir ao cinema mais uma vez, como forma de fugir dessa sua dolorosa vida. Eis que algo inesperado e irreal acontece: partindo de uma metalinguagem, ao assistir o filme A Rosa Púrpura do Cairo, um dos personagens se dirige diretamente a protagonista questionando que esta seria a quinta vez que a mulher estaria vendo o mesmo filme. Tom Baxter, herói do filme que Cecília tanto assiste, sai da tela, indo além de uma 'quebra da quarta parede' e vai ao encontro dela.


Nesse momento, temos o encontro dos dois mundos, a 'realidade real' e a 'realidade do cinema', visto que quem sai de tela não é o ator que interpreta Tom Baxter, mas sim o próprio personagem. Tem-se outra discussão, a quem pertence o personagem: ao ator ou ao diretor? Mesmo que essa discussão aconteça de forma mais direta no filme, ela não finda com uma conclusão. Cito mais uma vez Walter Benjamin, que diz que, no filme, se torna "menos importante o ator representar outro diante do público do que representar a si mesmo diante da aparelhagem".


Além disso, o encontro dos dois mundos evidencia as consequências existentes no mundo real, bem como suas responsabilidades, as quais Tom aprende no decorrer das suas vivências no 'real'.

"os reais querem vidas fictícias e os fictícios querem a vida real"


Esse choque recai também sobre Cecília, que sempre encantada com o mundo apresentado no cinema, apaixona-se por um personagem fictício. Diante de uma vida cruel, um sofrimento contínuo e uma busca por felicidade, Cecília se apaixona por Tom Baxter, que, assim como ela, é ingênuo. Mas ele não é real, é o homem perfeito que não existe.


A Rosa Púrpura do Cairo traz em sua narrativa um ar mágico (afinal, um personagem literalmente sai da tela) que acompanha também o imaginário sobre a realidade da tela, a ideia dessa recente arte que ainda é construída: o que está por trás da tela do cinema. Woody Allen provoca uma brincadeira poética na linguagem do cinematográfica, o que particularmente me lembrou do famoso boato sobre a primeira exibição dos irmão Lumière com "A Chegada do Trem na Estação", de que as pessoas teriam corrido por acreditarem que de fato o trem 'atravessaria' a tela.


O filme acendeu em mim o questionamento de "para quem os filmes são feitos?" e a necessidade hoje do homem com essa arte. Passada a corrida da invenção do aparelho que captura movimento e a competição pela primeira exibição pública, o cinema não é apenas o registro de cenas, mas uma forma de linguagem que alimenta a alma do espectador.


Na obra de Woody Allen, os exibidores e produtores do filme falam de um medo em desligar o projetor. Claro que se referem ao fato do personagem Tom Baxter acabar preso no mundo real, mas ao desligar o projetor, nós espectadores também acabamos presos e obrigados a voltar ao mundo real.


"no seu mundo, as coisas acabam bem"



Para Gil Sheperd, o ator que interpreta Tom Baxter, que se envolve com Cecília, toda a situação não passa uma aventura, enquanto que para a pobre moça, o relacionamento com Gil é a concretização de um conto de fadas, é tornar real a 'falsa realidade' que ela alcança ao assistir seus filmes.

"o mundo lá fora não é um filme"

Gil a deixa, Cecília volta a sua dura e triste realidade. E como escapar mais uma vez dessa realidade? Indo ao cinema. A moça volta ao cinema, chora e mais uma vez olha apaixonada para a tela.


E mais uma vez, cinema é esperança, é salvação, é refúgio


Lista de favoritos da redatora

  1. Amores Expressos | Wong Kar-wai, 1994

  2. Amor À Flor da Pele | Wong Kar-wai, 2000

  3. Crepúsculo dos Deuses | Billy Wilder, 1950

  4. Síndrome Mortal | Dario Argento, 1996

  5. Se Meu Apartamento Falasse | Billy Wilder, 1960

  6. Clube da Luta | David Fincher, 1999

  7. Os Incompreendidos | François Truffaut, 1959

  8. Eles Não Usam Black-tie | Leon Hirszman, 1981

  9. Era Uma Vez Em... Hollywood | Quentin Tarantino, 2019

  10. Retrato de Uma Jovem em Chamas | Céline Sciamma, 2019

  11. Um Corpo Que Cai | Alfred Hitchcock, 1958

  12. Vinhas da Ira | John Ford, 1940

  13. Companheiros: Uma Quase História de Amor | Peter Chan, 1996

  14. Noites de Cabíria | Federico Fellini, 1957

  15. A Rosa Púrpura do Cairo | Woody Allen, 1985

  16. Sinfonia da Necrópole | Juliana Rojas, 2014

  17. Desencanto | David Lean, 1946

  18. Os Intocáveis | Brian de Palma, 1987

  19. A Falecida | Leon Hirszman, 1965

  20. Saída Pela Loja | Banksy, 2010


Esse texto pertence ao nosso especial Favoritos da Cine-Stylo: Uma lista com os filmes prediletos de nossos redatores e 11 textos para discorrer um pouco dessa paixão. Acesse!


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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