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A Mesma Parte de Um Homem

Com uma abordagem fria, o filme conta um estranho caso de apropriação e substituição sobrepondo vivências e dialogando com a opressão cotidiana.

Pegando carona no pensamento de Aristóteles, por necessitar do outro para atingir sua completude, sendo carente e imperfeito, o ser humano se torna um animal político. Uma das estreias mais aguardadas da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann, 2021), reflete essa necessidade de amparo e, em certas esferas, dependência dentro de um ambiente familiar que, após a morte do patriarca, recebe um outro homem para cumprir seu papel.


Renata (Clarissa Kiste) e Luana (Laís Cristina) são mãe e filha e vivem em uma pacata fazenda chefiada por Miguel (Otávio Linhares). A rotina tensa e recheada de opressão muda quando este morre e, por um conveniente acaso, Lui (Irandhir Santos) chega, se apropria da identidade do pai e passa a viver com elas.


É interessante ver que, por mais que o filme aflore para muitos caminhos, ele nunca descarrila dos trilhos de sua premissa. Essa nova presença no ambiente é sempre incômoda e a dúvida silenciosa entre o acaso e o sobrenatural ronda o filme inteiro. Sem descanso, o espectador acompanha um desenrolar esquisito de ações rotineiras que evidenciam as diferenças e semelhanças nas figuras masculinas da família.


No começo é frio e escuro e por mais que se clareie com a nova presença, nunca perde as tonalidades sem saturação. O clima de “paz armada” é constante e, em resposta a qualquer estímulo, Renata e Luana respondem à altura. Quando Lui bate na mesa e volta da caça com a filha são dois momentos que explicitam bem isso. A falta de informação e os diálogos diminutos que quase nunca se relacionam diretamente com o que é mostrado no filme são elementos que não deixam aliviar a tensão e, quando associados ao desenrolar acavalado de acontecimentos, amplificam a ambiguidade de seu tema.


Ao mesmo tempo que existe como essa obra que sobrepõe vivências, cria uma jornada de redescobrimento. Renata, antes tomada pelo medo tanto dentro quanto fora de casa, com a chegada e familiarização de Lui, já não se vê mais ameaçada e migra do estado de submissa para dominadora. Da mesma forma, ele passa a ser uma amálgama entre sua vida anterior e a que tomou para si e, em oposição à trajetória que a esposa percorre, não se descobre como si mesmo, mas sim como a imagem projetada de outro alguém.


Até mesmo fora dessa abordagem social que ele faz, em que reflete sobre quais seriam os papéis de gênero e ressalta como a opressão vem através de um canal amplo e não substituível, ele se prostra como um filme sempre sobre o outro. É sobre a bagagem dissonante entre a roça e um intercâmbio na Alemanha, a frieza e o enjoo de matar uma galinha e tudo que basicamente envolve a comparação de dois indivíduos e como eles interagem em uma construção familiar.


No final vemos que, se aproveitando do título do filme, a mesma parte de um homem é o que perdura na relação e é apenas através da ruptura que mãe e filha conseguem achar espaço para seguir seu rumo. Se por um lado o filme dialoga com a tese de Aristóteles ao traçar o ser humano como parte inerente de uma composição social, ele traça uma linha perpendicular com a música de Beyoncé quando evidencia que a solução não é a substituição, mas sim a omissão.


Nota do crítico:


A Mesma Parte de Um Homem está disponível no site da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

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