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A lógica como entidade-chave do cinema pós-moderno

Um ensaio sobre como a racionalidade afeta a produção cinematográfica e a relação do espectador com o cinema no mundo contemporâneo



Ao longo da minha jornada de descobrimento do mundo cinéfilo, sempre me chamou atenção que os conteúdos sobre filmes que chegavam a mim seguiam um certo padrão, como se todos tivessem os mesmos objetivos em mente ao falar sobre uma obra: entendê-la e explicá-la ao mundo. Seja nos vídeos mais descontraídos no YouTube ou nas críticas publicadas em portais famosos e blogs, há uma vontade comum de “dissecar” os filmes e revelar a lógica por trás de narrativas complexas e finais em aberto, como se houvesse uma recompensa intelectual em desvendar cada nuance supostamente pensada pelo diretor, ou melhor, pelo roteirista.


Conforme fui me aprofundando nos estudos de cinema, essa fixação com a lógica foi se mostrando insuficiente e até contraditória na análise de uma obra cinematográfica, visto que se limita a um âmbito textual e ignora que um filme é, antes de tudo, uma concepção audiovisual. Não estou dizendo que a análise de uma história e suas referências e reflexões filosóficas é prejudicial e deve ser condenada, mas defendo que uma discussão sobre cinema não deveria parar por aí.


Com o tempo, descobri pessoas e conteúdos que, ao invés de tentar definir um filme de forma racional, buscavam construir uma ideia acerca dele baseada na experiência pessoal e em como cada elemento audiovisual contribuiu para essa experiência. Agora, imerso no mundo cinéfilo, busquei entender esse fenômeno da lógica como entidade que guia não só a maioria dos conteúdos online relacionados a filmes, mas também os espectadores no geral e, como consequência, molda o cinema em si. Mas antes de se aprofundar nessa análise, é preciso observar o papel da lógica e da racionalidade na sociedade contemporânea para, então, entender como isso se relaciona com a sétima arte.


Na história da humanidade, o pensamento racional se tornou cada vez mais protagonista. Os mitos que preenchiam o imaginário das civilizações antigas e eram parte essencial da vida humana foram perdendo espaço frente às explicações científicas possibilitadas pelos avanços tecnológicos do mundo moderno. Esse processo de depreciação do pensamento esotérico teve seu auge no Iluminismo, movimento que elevou a razão a um lugar de hegemonia na sociedade. Portanto, este movimento cultural é de certa forma um dos principais responsáveis por uma obsessão pela lógica que vigora nos dias de hoje. Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, enxergam o Iluminismo de forma crítica, já que o progresso técnico-científico que prometia emancipação e melhora na qualidade de vida nos levou, contraditoriamente, à bomba atômica, a duas guerras mundiais, ao holocausto etc.. O que prometeu trazer ordem, trouxe barbárie. Atualmente, no mundo pós-moderno, observamos e reagimos aos fenômenos da sociedade moderna, como o projeto iluminista. Ao mesmo tempo em que a lógica e a razão mantém sua hegemonia, lidamos com suas contradições, como expostas por Adorno e Horkheimer. Os efeitos disso podem ser percebidos em grande escala no âmbito cultural.


Especificamente no cinema, é possível observar tendências pós-modernas (já que não há mais espaço para algo tão concreto quanto um movimento cinematográfico) que respondem a questionamentos trazidos pela contemporaneidade. Um exemplo é o Slow Cinema, tendência difundida principalmente nos anos 90 que, ao reagir à crescente velocidade e volatilidade das coisas acentuadas pela globalização, busca um alargamento do plano e da duração do filme a ponto de atingir o tédio (mas também a contemplação) no espectador. O Cinema de Fluxo também responde a essa efemeridade tão presente no mundo contemporâneo, mas abraçando-a de certa maneira, trazendo consigo a morte da narrativa lógica e de ideias sólidas (como a noção de plano e de mise-en-scéne) para focar nas sensações em constante mudança (em fluxo). Outra tendência principal relacionada à pós-modernidade é o Maneirismo, no qual o cinema, após as “novas ondas” pelo mundo, se encontrava num lugar de amadurecimento pleno, provocando nos cineastas e teóricos o questionamento de para onde essa linguagem já estabelecida poderia ir, agora que tudo parecia já ter sido feito. Essa tendência se pautava numa deformação das técnicas do cinema clássico e moderno ao limite, tentando criar algo novo a partir dessa hiperestilização.


Todas essas tendências possuem em comum um afastamento em relação a um fator central da sociedade moderna - a lógica. Os planos longos enquadrando um cotidiano tedioso em Eu, Tu, Ele e Ela (Chantal Ackerman, 1974), grande exemplo do slow cinema, não necessariamente contribuem para uma narrativa, assim como as sequências contemplativas de Millennium Mambo (Hou Hsiao-Hsien, 2001), ícone do cinema de fluxo, não seguem uma ordem lógica de acontecimentos. Semelhantemente, maneiristas como Brian De Palma e Dario Argento na década de 80 integravam a “falta de lógica” em suas mise-en-scènes como uma ferramenta capaz de potencializar a narrativa (como em Dublê de Corpo e Prelúdio Para Matar) ou contribuir para a anamorfose (distorção) que reforça uma relação, tanto frontal quanto de estranheza, do espectador com a imagem. Paul Verhoeven, em Instinto Selvagem (1992), até brinca com a fragilidade da razão, numa narrativa de mistério em que o detetive interpretado por Michael Douglas segue obsessivamente a lógica mas sempre cai na frustração, cedendo aos instintos (opostos à racionalidade) materializados na icônica femme fatale de Sharon Stone. Em suma, grande parte das tendências cinematográficas da era pós-moderna vão por um caminho de embate à autoridade da lógica que ganhou força na modernidade, a fim de explorar ao máximo o poder da imagem e do som.


Atualmente, é comum vermos filmes que seguem caminhos parecidos com as tendências pós-modernas sendo rejeitados pelo senso comum, inclusive na crítica. As sagas Resident Evil do Paul W. S. Anderson e Transformers do Michael Bay, por exemplo, são até hoje recebidas com uma rejeição pautada, em sua maior parte, em críticas a “furos de roteiro” e inverossimilhança. Até os mais recentes Avatar - O Caminho da Água (James Cameron, 2022) e Top Gun - Maverick (Joseph Kosinski, 2022) são geralmente colocados em um lugar de desvalorização, como se fossem menos arte, por possuírem um roteiro “simples demais”. Esse senso comum é bem limitador para uma arte tão rica quanto o cinema, que inclusive já nasceu como um espetáculo visual. O primeiro cinema (o cinema de atrações), marcado por autores como George Meliés e os irmãos Lumière, era movido por um encantamento pelas possibilidades que essa arte recém-nascida trazia consigo, sem grandes preocupações com narrativas profundas ou complexas.


Em contrapartida, percebe-se uma crescente valorização (novamente, no lado da produção e no da recepção) de um estilo de filme que abraça o foco racional do mundo moderno. Filmes como Amnésia (Christopher Nolan, 2010) e Donnie Darko (Richard Kelly, 2001) adotam uma narrativa em que as peças não se encaixam tão explicitamente e, por isso, são colocados num pedestal pela cultura pop e consequentemente viram tema de inúmeros textos e vídeos na internet. O problema é que tal conteúdo se direciona quase que por completo a decifrar esses filmes como se fossem problemas matemáticos, ignorando a subjetividade inerente ao cinema. Até mesmo os próprios realizadores acabam fazendo isso, como na entrevista em que Nolan explica a estrutura de Amnésia ou na que Darren Aronofsky disseca as metáforas presentes em seu filme mãe! (2017). Essa prática de racionalização da arte, apesar de naturalizada, é limitadora por reduzir o potencial interpretativo de cada filme a uma só resposta que é dada como certa, como verdade objetiva.


Em decorrência dessas implicações, a submissão do cinema à autoridade da lógica é algo preocupante para o futuro de uma arte tão nova. A arte é um exercício essencialmente humano e, por isso, carrega consigo toda a subjetividade e o “romantismo” que estão no cerne da humanidade. Não existe e nunca existirá uma régua universal que meça a qualidade de um filme de maneira objetiva e racional, então não faz sentido procurarmos isso em nossas experiências como telespectadores. Nesse sentido, é preciso mudar a maneira de fazer e de receber o cinema, desapegando do culto à racionalidade e enxergando o cinema em sua totalidade. Afinal, sua beleza está justamente na sua capacidade de se moldar em cada indivíduo que o assiste numa jornada sensorial de imagens e sons. E a razão está longe de conseguir explicar isso.


 

Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aquie para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.


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