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A Felicidade Não Se Compra (1946)

Frank Capra constrói um belo conto natalino que, por trás de uma aparente simplicidade, revela a beleza inocente de uma vida vivida pela bem aventurança, com uma forma cinematográfica sutilmente sofisticada.



O filme trabalha sob uma unidade de simplicidade e inocência que rege a narrativa, mas que não por isso a torna simplória. Tem, na verdade, uma construção dialética tanto em sua decupagem como nos eventos da estória, que compõe a mise-en-scène do filme através de oposições para, ao fim, afirmar o valor da vida em razão da sua efemeridade. Frank Capra constrói seu filme lidando com oposições tanto em seu conteúdo (George precisa conhecer a "morte" para valorizar a vida), como em sua decupagem: tem uma construção de planos muito bem pensada, mas ao mesmo tempo busca, através dessa mesma decupagem, evidenciar a inocência e simplicidade de seu protagonista, que reverberam alegria e energia vital na cidade e nas pessoas ao seu redor.


A obviedade de seu conteúdo pode fazer parecer um filme óbvio e, por isso, simplório ou bobo. Mas isso é se deixar enganar pelo que se conta, prefiro aqui olhar para como essa história é contada. Ser óbvio é parte da relação com o filme, mesmo a forma como usa recursos simbólicos (por exemplo, o "Bailey Park" que transforma-se em um cemitério quando George "nunca nasceu"), reforça essa obviedade e simplicidade, enquanto utiliza de recursos narrativos mais complexos que potencializam não a mensagem conteudista, mas a emoção gerada no espectador. Pretendo explicar isso melhor ao longo do texto.


Primeiramente, há um embate entre a tragédia e o milagre, a desesperança e a fé, que guia o filme desde o início. Logo nos primeiros minutos, durante a conversa entre Deus, José e o anjo, descobrimos que uma tragédia está para acontecer: George Bailey quer se matar. Mas, também essa conversa antecipa a salvação de Bailey pelo anjo. Embora trate-se de um recurso usual de uma arquitrama (colocar, logo ao início, uma pergunta para ser respondida ao final do filme: "o anjo conseguirá salvar George Bailey?"), é justamente esse conflito gerado pelos opostos (tragédia e milagre) e a tensão criada por essa pergunta (que só existe pois há a possibilidade de que a tragédia prevaleça sobre o milagre) que tornam a simplicidade do filme complexa, que o tiram de uma pieguice. Frank Capra nos mostra a desesperança de George, até o ponto em que não podemos mais julgá-lo por sua decisão de se matar. Aí, então, entra com sua visão moral quanto à atitude de Bailey. É um filme moralizante, mas que não julga seu personagem, e por isso mesmo consegue gerar tanta comoção e sensibilidade.



A construção emocional em torno de George Bailey é carregada com perfeição por James Stewart, que traz também uma relação dialética em seu personagem: consegue transmitir toda a ingenuidade, simplicidade e alegria de George; ao mesmo tempo que podemos perceber como o homem vai, ainda que sutilmente, frustrando-se com a vida de negócios que precisa levar em sua cidade - onde se quer queria estar morando -. até o ponto em que tudo o que o incomoda explode diante da perda dos 8 mil doláres, a tragédia que leva-o a querer tirar a própria vida. Isso é magistralmente conduzido pela atuação de Stewart, mas não teria toda a força que tem se não fosse por todo o brilhante elenco do filme que também constrói essa comoção ao redor do personagem. Um destaque para Donna Reed que, como Mary, carrega uma inocência e uma atuação meiga, complementando a simplicidade de seu marido. Vemos como Mary agrega e potencializa a generosidade que George já tinha. Isso, aliado à química hipnótica entre os atores, é essencial para o estabelecimento da paixão entre os dois, que é motor para o envolvimento emocional que passamos a ter com ambos os personagens, envolvimento este necessário para o clímax do filme.


Com essas relações de oposição que trazem vida e organicidade para uma história que poderia facilmente escorregar e tornar-se piegas, Frank Capra cria uma obra comovente sobre como queremos passar nosso precioso tempo nessa dádiva que é a vida. O diretor recusa as saídas fáceis, ainda que lidando com a simplicidade, e potencializa a nossa empatia pela vida que surge na tela, por todos aqueles personagens e em especial por seu protagonista. Através de toda a composição complexa de "A Felicidade Não Se Compra", conseguimos admirar a inocência de viver.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.

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