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A ambição pelo digital

Bem, mãe, estamos entrando numa era, com o digital, na qual, por razões diferentes, a humanidade será confrontada por problemas que não permitirão o luxo de se expressar. (Film Socialisme)



A paixão em fazer cinema não impediu Abel Ferrara de manter uma cadência de filmes após precisar se afastar de sua terra natal rumo à Europa, o lugar onde produtores (e festivais) abraçaram e levaram seus filmes em consideração. Entre pontapés e rejeições, altos e baixos, adequações e divergências, a essência ferrariana foi amadurecendo, mas nunca se perdeu. Sua união com Willem Dafoe encontrou em Tommaso, lançado em 2019, seu lado “autocrítico” tardio, um processo criativo autorreflexivo que o levou até Siberia, um ano depois – ao meu ver, com diversas ressalvas –, mas que foi apenas mais um tijolo no muro para Zero and Ones, em 2021.


Como todos nós, Ferrara se viu confinado diante da pandemia que assolou o mundo e a Itália – um dos países que, infelizmente, mais sofreu com mortes pelo coronavírus –, agora seu lar, e, numa espécie de eloquência rebelde, de reestruturação de seu próprio cinema (como outrora foi The Blackout e Enigma do Poder [New Rose Hotel] nos anos 90), da ansiedade espontânea de se utilizar dos dispositivos ao seu alcance para manifestar suas próprias angústias em meio as condições impostas (a pandemia e, naturalmente, dificuldades técnicas e financeiras), o que surge desse Ferrara é Zero and Ones e o retorno às distorções abstratas que apenas, e ele sabe disso, o digital pode conceder.



Logo de início, Ferrara desfragmenta o fio-condutor narrativo que pode emaranhar a pungência imagética. Ethan Hawke se apresenta como um fã dos filmes do diretor, com quem há muito queria trabalhar, e conta (pouco, mas é tudo) sobre a premissa de Zero and Ones: um militar, que não sabemos se é um herói ou vilão, em busca de seu irmão, um revolucionário; ambos interpretados por Hawke. Essa progressividade narrativa não é tão importante quanto a necessidade pomposa que Ferrara tem de capturar o desmanche de imagens feitas pelo digital: as ruas desertas consumida pelo peso do granulado, o movimento de um corpo interrompido pelo slow da câmera e seus movimentos inquietamente ponderados, os close-ups violentamente delicados; os efeitos que radicalizam e expõe todo o impasto (revelar o suporte que sustenta aquilo que se filma) da imagem. E não somente isso, mas também signos religiosos que constantemente aparecem (presentes em outras obras de Ferrara) e evocam questionamentos, a verborragia como forma de revelar o que não se quer mostrar: perguntas nunca são respondidas e frases são soltas caoticamente como se significassem muito, mas ao mesmo tempo nada. Enfim, tudo passa pelo digital.


O digital não é feito para melhorar a qualidade da imagem, mas para realizar uma fusão de uma massa de imagens que devem ser transportadas juntas, como deportados em um vagão. Em seguida você tem que descompactá-las, reanimá-las... De qualquer forma, em breve não haverá televisão, haverá um forno de micro-ondas com Internet, seu banqueiro que liga para você ao mesmo tempo e uma galinha assando ao fundo, pobre mãe de família!

Jean-Luc Godard



Nesse sentido, o enclausuramento do protagonista interpretado por Ethan Hawke é praticamente metafísico, o “ser enquanto ser” diante da supressão material desse mundo (ou dessa encenação, se é possível utilizar essa palavra), carregando o peso do progressivo declínio da civilização nos ombros. Logo, toda a missão de Hawke mais parece com uma passagem pelo inferno. E como qualquer protagonista de Ferrara, é impelido a atravessar essa via crucis, ser o mote de uma trama sobre paranoia conspiracionista propositalmente convoluta e confusa, em busca de respostas que nunca chegam.


Assim como o deserto urbano de Roma, o ruído que existe nas ruinas da imagem, do abismo abstrato que Ferrara veementemente revela – que remete ou não aos seus anos estudantis como apreciador de Stan Brakhage –, se encontra, primeiro, na dilatação (evidenciar o granulado, o ruído; explodir e revelas cores invisíveis) e, em seguida, na rarefação dessas imagens (a consequente perda de densidade dessas figuras em cena), para assim encarar suas consequências e alcançar a superfície; enfim, enxergar o que existe quando tudo se expõe. E o que se expõe, o que se mostra, é esse conflito entre a tensão latente estabelecida pela filmagem digital e o que se é filmado, enclausurado dentro dos limites desse aparato. Tudo passa pelo digital porque é como Ferrara imprime essa claustrofobia alienante de um futuro perdido, que só termina quando finalmente vemos pessoas caminhando pelas ruas de Roma sob a luz do dia.


Nesse sentido, ao retornar à superfície para alcançar o abismo, Ferrara encontra nas produções mais recentes de Jean-Luc Godard (Film Socialisme, Adeus à Linguagem e Imagem e Palavra), um contemporâneo que também explora o digital e suas possibilidades imagéticas longe de atribuições mais soberbas que se tem desse dispositivo – não a toa, e diga-se de passagem, fiz duas citações de sua autoria. Em Adeus à Linguagem, por exemplo, um cachorro é a forma para descrever a nudez da imagem (“Não há nudez na natureza, e o animal não está, portanto, nu, porque é nu”). Assim, é preciso que as imagens sejam dilatadas (alcançar o impasto) ao ponto de se desnudarem completamente de sentido; retornar a natureza superficial e plana para validar sua profundidade. É justamente nesse escoamento dos planos e como o dispositivo cinematográfico infere no objeto filmado, que vai se revelando as bordas, os limites do digital.



O digital e a fusão de imagens


Zero and Ones trilha um caminho muito particular dentro da utilização do digital como um aparato tecnológico que faz a “fusão de uma massa de imagens que devem ser transportadas juntas” no cinema. Esse dispositivo, como anseio formal que se manifesta naturalmente das pretensões narrativas e temáticas surge, primeiramente, como uma continuação do vídeo no cinema.


Ferrara exercitou ainda em The Blackout (1997), sua releitura bastante particular de Um Corpo que Cai e que virou a chave para o cineasta realizar novos exercícios dentro de sua filmografia – vinte e dois anos depois de Godard experimentar radicalmente a relação entre vídeo e cinema em Numéro Deux, de 1975 (e se continuo citando Godard é porque seus filmes estão inevitavelmente interligados com todo o segundo cinema que surgiu depois dos anos 60, e para mostrar o elo que constrói, diretamente ou não, com Ferrara). As intromissões da câmera de vídeo do personagem de Dennis Hopper e, principalmente, o achatamento das imagens de vídeo e a dissolução das mesmas contribuiu para que Ferrara entendesse a dialética entre cinema e vídeo e como rarefazer, metafisicamente, o que se era filmado. Progressivamente, trabalhou com as mesmas temáticas em Enigma do Poder. E se Zero and Ones remete a Enigma do Poder, tudo o que foi posto sobre o digital começou nessa produção lançada em 1997, onde Ferrara trouxe seus experimentos com o vídeo e estabeleceu uma mixagem visual de superfícies e camadas de imagens digitais (as filmagens em vídeos, em celulares e pagers, a atmosfera cyberpunk enigmática e sombria absorvida por tudo isso) que se diluíam umas nas outras, devorando a si mesma em um fluxo interminavelmente infernal.


Dito isso, o que se precisa entender logo depois é como Michael Mann, depois de Ferrara, viria a se adequar ao digital. Isso porque Colateral e Miami Vice não são necessariamente próximos do cinema de Abel Ferrara – mesmo que ambos tenham se encontrado e trabalhado juntos –, mas o propósito é justamente encontrar a trilha que fez Mann entrar nesse caminho do digital como “fusão de imagens”. Para elucidar o meu ponto, primeiramente vamos dividir as propostas formais de Mann em Colateral e Miami Vice.


A jornada impetuosa do assassino de aluguel interpretado por Tom Cruise, passageiro do táxi de Jamie Foxx, seu infeliz cúmplice, em Colateral, revela a principal função que o digital exerce sobre a encenação: uma forma de refletir como aquelas pessoas, de corpo e mente, carne e pele envoltas em seus próprios desejos e sonhos e realidades, se encontram em meio ao caos urbano escondido debaixo da calmaria noturna. Os devaneios de um taxista impostos contra a pungência da lente da câmera, que o engole e vai integrando-o progressivamente àquele mundo que, mesmo andando para cima e para baixo, nunca o consumiu até então. O espaço principal aqui é o do carro, íntimo e reservado, contra a violência de um mundo que existe só depois da porta (“Existem milhares de galáxias, e estrelas, você pega uma... somos nós, perdidos no espaço...o policial, você e eu... Quem nota isso?”)


Quando Jean-Baptiste Thoret escreve, a propósito de Miami Vice (“The Gravity of the Flux”), sobre “a extrema granulação da imagem, a elevada sensibilidade da luz e a diluição das cores conferem a cada plano uma densidade nunca antes vista na tela do cinema”, e ainda, “um relâmpago que risca o céu, uma palmeira que se dobra sob o peso do vento e a câmera de Mann perseguindo incansavelmente uma noite incandescente, transmitem a sensação de um filme alucinatório onde homem e natureza se dissolvem um no outro, estremecendo com o mesmo trágico respirar”, imediatamente distancia o filme de seu antecessor, e Mann da rarefação que Ferrara continuamente buscou nos anos 90, mas aproxima-os quando convergem na radicalização, na convergência de densidades entre imagens, pelos espaços estruturais através da dilatação do digital (em Gangues do Gueto [R ‘Xmas, 2001], que cito brevemente para melhor compreensão), e principalmente, nas ambições estéticas e formais como solução para suas construções narrativas.


Nesse sentido, da mesma forma que Ferrara dilui suas imagens umas nas outras em Enigma do Poder, da mesma forma em que permite que a câmera por si só estabeleça toda a tensão pulsante em Zero and Ones – e confronta o cinema contra as possibilidades do suporte da imagem digital (as câmeras de vigilância, a visão noturna do aparelho), como em ambos –, Mann traz à frente toda a superfície imagética do background e o contorno das figuras em cena, remove o peso dos corpos e os preenche com a textura do granulado e do ruído: ele funde e achata essas imagens em “135 minutos ofegantes inferidos em um fluxo ininterrupto de fotos e eventos”, como disse Thoret. Esse fluxo ainda infere no mesmo via crucis de Ethan Hawke em Zero and Ones. E os momentos de contemplação dos personagens são uma calmaria antes da tempestade para Mann, enquanto para Ferrara, é uma angústia que não pode ser esquecida (Willem Dafoe trancafiado na cápsula, as ruas desertas de Roma e os espaços claustrofóbicos que encolhem Ethan Hawke). Os espaços estruturais delineados (as paredes e prédios, bares, baladas, salas e ambientes sociais) se dispõem, mudam e retornam – e a comparação com Gangues de Gueto fica mais clara (o ambiente doméstico, as ruas, o carro).


Mann não retornou ao cinema desde Hacker (Blackhat, 2015), mas com Zero and Ones, as possibilidades experimentais de Ferrara retornam. Resta saber, acompanhando essa próxima década, se vai deslumbrar novos caminhos e anseios nesse cinema tardio do cineasta.




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