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A Última Sessão de Cinema - A vida começa onde a sessão termina

Em drama melancólico e repleto de ternura, Peter Bogdanovich disseca as relações sociais interioranas e sua influência no processo de amadurecimento de um indivíduo.



No início da década de 50, numa pequena cidade no interior do Texas, jovens procuram algum tipo de entretenimento para passar o tempo. As opções são, claro, limitadas, sendo o cinema da cidade a principal opção de lazer, onde no escuro da sala, jovens trocam beijos e carícias, que são somente evidenciados pela luz refletida da projeção. Baseado no livro semi-biográfico de mesmo nome, A Última Sessão de Cinema aborda as nuances e sensibilidades de um processo de amadurecimento constantemente influenciado pelo meio em que é concretizado. O longa possui, no olhar sensível do diretor Peter Bogdanovich acerca do sentimento humano, o mais terno retrato do que é amadurecer: dos questionamentos intrínsecos ao processo de mudança que ocorre no íntimo dos personagens à sensação de desolação causada pela perda da inocência, literalizada no filme com o fechamento da única sala de cinema da cidade, que de alguma forma funcionava como um refúgio da austeridade da vida para estes jovens.


O ambiente do interior texano no início dos anos 50 é parte essencial de A Última Sessão de Cinema: os ventos sempre soprantes perpassam a cidadezinha, como a música de Hank Williams e outros populares nomes da música country tocam intensamente pelas rádios. Nesse cenário de desilusão de um período entre guerras, vivem os jovens Sonny e Duane, que estão no último ano do ensino médio e passam melancólicos dias na restrita cidade. Peter Bogdanovich utiliza a primeira experiência de amor desses jovens como fio condutor dessa história de amadurecimento; na trama, Sonny é encarregado de levar a esposa de seu treinador, Ruth, ao médico e acaba se envolvendo sexualmente com a mulher, enquanto Duane namora a mimada e requisitada Jacy Farrow, a quem Sonny também nutre sentimentos. Bogdanovich traça com sensibilidade todas as relações do filme, que se emaranham na repetitiva estrutura social da pequena cidade - os filhos repetem os atos dos pais, as restrições e tabus permanecem os mesmos, nada muda no Texas retratado pelo diretor.



Enclausurados em vidas já concebidas, os personagens parecem então limitar seus esforços em buscar algum tipo de entretenimento, que pelo menos em curto período de tempo, pareça romper com a monotonia repetitiva a que estão submetidos por viver ali. Essa busca se manifesta como um impulso à sexualidade, que permeia aquela estrutura por todos os lados, e que é fundamental no processo de amadurecimento dos personagens. Logo, os relacionamentos são pautados sob uma perspectiva de descoberta sexual, que para os jovens como Sonny, Duane e Jacy, se manifesta nas primeiras experiências desse tipo, enquanto para a esposa do treinador com quem Sonny se relaciona, e para muitos outros adultos da trama, se manifesta numa redescoberta da própria sexualidade, que era antes decadente e atrelada ao passado, como tudo na pequena cidade. Ao posicionar seu olhar diante da influência da concretização dos impulsos mais primitivos nos personagens, Bogdanovich acaba por destrinchar, em parte, o funcionamento estrutural daquela sociedade. São pessoas restringidas desde sempre, seja pela Guerra, pela Grande Depressão, ou pelas limitações sociais que existem desde sempre no interior do oeste americano, e que aprenderam desde muito novas a obedecer essas ordens pré-estabelecidas.


Em determinado momento do filme, Sonny questiona a esposa do treinador do porquê dela ter se casado com ele. A resposta remete ao mesmo senso de rebeldia que a geração de Sonny, Duane e Jacy tentam refletir em seus atos, com Ruth afirmando apenas desejar contrariar os pais e causar controversas sensações nos moradores da cidade na época. Quando questionada por Sonny do porquê ainda se mantém casada com ele, mesmo sendo infeliz, Ruth acaba retornando para a estrutura que inocentemente imaginou estar rompendo na juventude, afirmando que “uma mulher não pode abandonar seu marido''. Esses pequenos atos que Bogdanovich insere com sensível naturalidade, expressam a melancolia envolta na repetição dessa sociedade, e ressaltam a importância existente no senso de rompimento com essa composição, para os indivíduos. O desabafo de Ruth faz paralelo com o que vive a personagem Jacy Farrow, que se situa em um momento da vida parecido com o de Ruth quando era nova. Ao buscar se situar, de maneira incessante, em um estado de excitação, Jacy se mostra frequentemente preocupada com as percepções do núcleo social da cidade em relação aos seus atos, agindo sempre como quem busca a reação mais calorosa das pessoas ao redor. Sonny então, acaba se situando em uma posição de ambiguidade sentimental: ao mesmo tempo que se relaciona com Ruth, que representa tanto uma maturidade à qual ele pestaneja em se entregar como também a consolidação da estrutura que o mantém infeliz na cidade, o jovem igualmente nutre sentimentos pela vivaz Jacy, que funciona como um recanto de problemas para o qual ele é atraído, e que representa todo o encantamento pela inconsequência, natural a sua idade. No triângulo amoroso que se forma, mais do que representar um embate entre o prazer que há na experiência e na imaturidade, essa ambivalência expressa o quão opressivamente o ambiente se impõe aos indivíduos, fazendo com que ambos os lados partam de uma mesma moeda, onde não importa quão longe os personagens pareçam ir, não há maneira de se desatrelar da estrutura limitadora da cidadezinha.


O ambiente do Texas contemporâneo que Bogdanovich retrata com o máximo de detalhes (filmando inclusive na cidade onde viveu o autor do livro, Larry McMurtry), é repleto dessa desolação comum ao mito do homem de tristeza constante da música country e folk dos Estados Unidos, reproduzido em muitas obras de McMurtry, como em Horseman, Pass By, e no próprio A Última Sessão de Cinema. Não é à toa, inclusive, que Hank Williams domina a trilha-sonora do longa, tocando em todas as rádios dos estabelecimentos da cidade. São canções que retratam de maneira tão característica o amor, o sofrimento, alegrias e tristezas, numa linguagem que faz parte da cultura interiorana americana. São cowboys modernos, mas não menos solitários, e o ambiente sórdido do velho oeste manifesta seus resquícios nesse novo Texas, que não mudou tanto quanto gostaria de acreditar. Bogdanovich reproduz, em linguagem cinematográfica, a típica melancolia da literatura prosaica de McMurtry, ao retratar o lamento na perspectiva de vida desolada do interior, que se mostra cerceadora para os jovens que observam um mundo cada vez mais expansivo, mas que continuam presos ao estilo de vida de uma cidade que parece à deriva do crescimento, abandonada e esquecida, à mercê da própria repetição.



Quando Sonny, Duane e Jacy finalmente se formam no ensino médio, toda estrutura social da cidade parece sofrer um abalo. Mesmo com um ciclo de suas vidas chegando ao fim, há uma forte ligação que a cidade ainda exerce sobre esses personagens. Duane está deixando a cidade para lutar na Guerra da Coréia, Jacy está sendo obrigada pelos pais a fazer faculdade em Dallas, e Sonny observa com melancolia a despedida de uma vida à qual ele outrora pertencera, como quem ressente ao perceber se esvair a própria inocência. O cinema da cidade, que antes funcionava como o ponto de encontro desses jovens, apresenta agora sua última sessão. A relação que a cultura exerce sob a austeridade daquele espaço, seja com os filmes no cinema, ou com as músicas na rádio, funcionam como um respiro em meio ao sufoco, um ponto de luz na escuridão, que leva os personagens para um lugar distante dali, ao mesmo tempo que é perto o suficiente do que se pode chamar de lar. A luz que reflete da projeção, reluzia pela última vez perante os rostos de Sonny e Duane, conscientes do que simbolicamente representava aquela sessão: o fim do refúgio de uma vida acinzentada, o golpe final intrínseco ao ato de amadurecer, que retira a ilusão, e entrega de volta o amargor de uma vida que está apenas por começar.


Todos os personagens parecem atolados de sentimentos há muito tempo resguardados, palavras nunca ditas que se acostumaram a permanecer em penumbra, torcendo para serem esquecidas pelo tempo, para que a dor latente emanada pelo silêncio encontre um fim onde desatine sem doer. São romances antigos, renegados em virtude de uma estrutura proibitiva, e que Bogdanovich retrata com naturalidade, compondo na imagem toda a intensidade sentimental presente no íntimo dos personagens. Talvez seja o filme que melhor retrata a transposição de sentimentos em imagens, de modo que, mesmo envolto numa melancolia e rispidez inerente àquele ambiente, consegue figurar o mais sincero encanto do que é viver, em todas as vias de prazer e sofrimento que nos tornam quem somos. Esse poder que há em A Última Sessão de Cinema, de traduzir para as telas o que é intraduzível ao espírito, é capaz de criar um vínculo de identificação muito forte, da obra para com o espectador. É um drama de amadurecimento cheio de vida em sua soturnidade - vida essa que permanece sucumbida no interior dos personagens -, mas que Bogdanovich ajuda a desbravar com seu olhar sensível acerca de um terno maturar.


Lista de favoritos do redator

1. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa | Woody Allen, 1977

2. Os Incompreendidos | François Truffaut, 1959

3. Domicílio Conjugal | François Truffaut, 1970

4. O Bebê de Rosemary | Roman Polanski, 1968

5. Psicose | Alfred Hitchcock, 1960

6. Encontros e Desencontros | Sofia Coppola, 2003

7. Beijos Proibidos | François Truffaut, 1968

8. Chinatown | Roman Polanski, 1974

9. Masculino-Feminino | Jean-Luc Godard, 1966

10. Star-Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma | George Lucas, 1999

11. Manhattan | Woody Allen, 1979

12. A Última Sessão de Cinema | Peter Bogdanovich, 1971

13. Levado da Breca | Howard Hawks, 1938

14. Meia-Noite em Paris | Woody Allen, 2012

15. Paixão dos Fortes | John Ford, 1942

16. A Aventura | Michelangelo Antonioni, 1960

17. Antoine e Colette | François Truffaut, 1962

18. O Amor em Fuga | François Truffaut, 1979

19. O Poderoso Chefão Parte II | Francis Ford Coppola, 1974

20. Era Uma Vez Em... Hollywood | Quentin Tarantino, 2019


Esse texto pertence ao nosso especial Favoritos da Cine-Stylo: Uma lista com os filmes prediletos de nossos redatores e 11 textos para discorrer um pouco dessa paixão. Acesse!


 

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